A chave

Izabella Cristo
Ninho de Escritores
3 min readOct 19, 2020

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Eu não sei quando foi.

Não me lembro bem. Foi outro dia desses.

Se me perguntarem uma data, uma hora bem definida, não saberei dizer nem quando, nem o porquê.

Falarei: são coisas da vida. Aquela desculpa esfarrapada que se diz mesmo sabendo que não vai convencer.

Eu não sei quando foi, nem se foi em algum segundo certo. Não teve um número, um marco, um fato de comiseração.

Nem sei também o que significa.

Só sei que o tempo rodou, o mundo rodopiou, uma chave virou e me dei conta: sou velho.

Algo dentro de mim mudou. O termostato da felicidade cambiou em certa idade. A bússola interna redirecionou o ponteiro principal de lugar.

Não foi no momento em que eu me toquei disto. A verdade é que enquanto eu tomava a consciência do meu novo estado de espírito velho, percebia que isto já havia acontecido há algum tempo.

Tentei identificar quando. Já estava atrasada alguns anos. Percebi que tinha feito alguns planos. Havia projetado mil enganos para uma vida inteira, como se fosse viver para todo o sempre. Minha mente reinava com a pujança do tempo e a fartura do relógio. Como se a vida fosse uma grande lambança e eu tivesse todo o tempo de seguir e realizar todas as minhas tolas ideais.

Comédia.

A chave rodou.

Não fui eu quem girou.

Alguma coisa aqui dentro mudou.

E eu, simplesmente aceitei: estou velho.

Então, olhei alguém mais novo. O vi dizendo ao povo que nunca faria. Deu vontade de dar um abraço. Dizer: amigo, espere alguns calos… Me reconheci enganando a mim mesmo.

De repente, me vi fazendo exatamente o trabalho inútil que julgava da minha mãe: enxugando a louça.

Entendi os motivos de se usar touca antes de dormir.

Esbravejei num dia e no outro lembrei de levar o guarda chuva.

Plantei uma muda. Esperei ela crescer para arrancar umas folhas, em vez de comprar no mercado.

Eu cozinhei um prato. Completo. Arroz, feijão e carne. E não miojo.

Coloquei feijão de molho.

Me preocupei em comer algo com espinafre. Ou parecido.

Me preocupei se era orgânico. Se causou algum dano para o infinito.

Tive saudade de um aparelho eletrônico que não existe mais.

Comparei algo e quis voltar anos atrás.

Tive medo.

Não quis fazer algo que até momentos antes não me causavam nenhum receio.

Lembrei que sou efêmero.

O pior mesmo é que ainda tenho a pachorra de me achar jovem.

Não aceito.

Dentro de mim, tem alguém muito mais novo que este corpo.

Me olho de novo, não me reconheço.

Na minha cabeça, ainda tenho aquelas belas curvas que finjo não ver ao fugir dos espelhos.

Olho aqui dentro e ainda vejo jovialidade e coragem. Acho que sou bem mais vivo do que achei que seria nesta idade, embora me falte ainda alguma maturidade.

Penso que guardo intacto ainda alguns tolos pedaços meus de criança. Trago memórias e checo minha infância. Carrego menos esperança e muito mais lembranças de coisas que não convém.

Já não acredito no além. Não murmuro à toa nenhum amém. Me falta fé e confiança no futuro, mas me sobra um pouco de empatia e caridade.

Rodou a chave, minha gente!

No dia da criança, logo se vê. Se escreve um texto para falar quão velho você ficou.

O que te restou, o que te sobra de alma.

Se acalma, meu velho!

Se tiver sorte, a velhice só começou.

Ainda restam uns anos a favor. Ainda hás de reclamar: tudo mudou. Na sua época, não era assim.

Reclamar dessa geração que não aproveita, que faz desfeita, que não respeita.

O mundo não melhorou.

O mundo mundo é o mesmo.

A chave rodou.

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Izabella Cristo
Ninho de Escritores

Me Escondo Aqui. Escritora✒️, Cirurgiã🔪Mãe👻,em relacionamento sério com as palavras. Livros: Vida Nada Moderna, Retratos da quarentena. www.izabellacristo.com