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A chuva de Luz

Laís Grilletti
Ninho de Escritores
5 min readNov 17, 2020

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O primeiro trovão ressoava longe, enganando a hora que a chuva demoraria a cair. Luz saiu de casa de vestido florido e sandálias abertas, confiante no sol ardido do almoço. A menina já estava acostumada a planejar passeios com o céu, mas ainda era jovem para saber que, mesmo confiando no sol, são as nuvens que surpreendem.

Foi, então, que aconteceu. Mergulhada em seus pensamentos, só acordou do sonho de olhos abertos quando a primeira gota tocou a ponta de seu nariz. Olhou para o alto a tempo de ver o último raio de sol sufocado em nuvens cinzas, prestes a trovejar.

Ao redor, o vento batia portas e janelas, colocando crianças para dentro de casa antes do segundo relâmpago.

Aquele ponto da praia era de poucas referências, mas o suficiente para Luz notar — antes da segunda gota pingar em seu ombro — que ela estava longe de casa.

Longe e de sandálias.

Luz deu meia-volta no calçadão, apressando o passo com a pressa de quem foge do apocalipse. O céu ficava mais e mais cinza na direção em que a menina corria. Os olhos fixos na sua frente, sem coragem de espiar as nuvens que a perseguiam logo atrás.

Mas o anúncio tímido das primeitas gotas não fez jus ao que vinha a seguir. Uma garoa pesada, de afogar passarinho, encharcou seu cabelo, seu vestido, suas sandálias. Em barulho crescente, a chuva logo era chuvarada, dessas que não economizam na precipitação. O peso das nuvens se esvaziava sob Luz, em gotas de fechar os olhos, enquanto seus pés patinavam na sandália molhada escorregando no chão.

Luz corria muito para pouco sair do lugar. Ainda em movimento, arrancou as sandálias, pisando nos paralelepípedos doídos do calçadão.

Nunca tomara um banho tão molhado como aquele, nem mesmo na cachoeira. Mas esse pensamento nem cruzou sua mente, ocupada com outra ideia que chovia em sua cabeça. Esquerda, direita, esquerda, direita. Corria nesse ritmo sabendo que, uma hora, o pesadelo iria acabar. O sol ressurgiria no alto, vencendo as nuvens, para iluminar.

Naquele momento, porém, Luz já não se lembrava do sol. A chuva carregava com ela o lixo das calçadas em correntezas que já cobriam seu tornozelo. Finalmente, quando o vestido gelado já colava em seu corpo, prenunciando um resfriado, e os pés ardiam marcados pela testura do chão, Luz avistou sua casa.

Na porta, uma forma humana segurava um guarda-chuva. Era sua salvação. Apertou o passo chovendo também pelos olhos. Sentia o calor das lágrimas salgadas escorrendo em suas bochechas, até serem expulsas pela chuva.

A poucos passos de casa, suas lágrimas já não eram de pesadelo, mas sim de gratidão. Amou sua mãe naquele instante como só o tinha feito uma vez. Aquela em que se perdeu no parquinho da praia e confrontou a solidão.

O guarda-chuva, àquela altura, era apetrecho próximo de inútil, mas servia de consolo para sua chegada. Luz abraçou em prantos sua mãe, sentindo as pernas doídas, em chamas de tanto correr.

Entrou em casa, fechou a porta e respirou. Era a primeira vez que sentia o ar entrando pelos pulmões desde aquela segunda gota no ombro. Abandonou as sandálias no corredor, tirou o vestido ensopado e saiu pingando até o chuveiro.

Não acreditava que a única forma de se sentir melhor era se molhando mais.

Mas era.

Quando a água quente tocou sua pele, sentiu o abraço de mil avós. O fluxo encanado expulsava qualquer gota gelada que persistia em seu corpo.

Chorou novamente. Não sabia se era de atraso ou encantamento, ao tomar — o que pareceu ser — o primeiro banho de sua vida.

Luz estava pronta para ser abraçada pela toalha. Secou as lágrimas, os pés e a pele. O calor do chuveiro ainda suava no espelho, deixando o vapor cheiroso do xampu aquecer o banheiro. Estava, enfim, segura.

A chuva insistente cantando no telhado era agora lembrança distante de um pesadelo que já passou.

Quando o chocolate com canela aquecia o lado de dentro, a chuva foi rareando até silenciar. O céu, porém, não se pintava de sol ou de cores. Já era noite e tudo o que se via era o nada. As estrelas já não estavam lá.

Luz foi dormir o sono dos corajosos. Sonhou com o deserto e uma seca de 40 anos, sem trégua. Naquela noite, aquele era um sonho bom.

No dia seguinte, o sol raiava desmemoriado da tempestade. Raiava como se Luz pudesse confiar novamente no céu. Mas a menina tinha aprendido sua lição.

Logo que sua mãe gritou o café já pronto, ouviu-se pela casa um barulho pesado de plástico trotando pelas escadas. Luz usava outro vestido de flores, mas dessa vez, acompanhado de suas galochas amarelas.

— Luz, aonde você vai com essas galochas? — perguntou sua mãe entre risos. — Hoje não tem previsão de chuva.

— Ah, não se pode confiar no céu, mãe. A qualquer momento, o tempo vai virar. — a menina respondeu transbordando ressentimento.

Não havia quem tirasse aquela ideia de sua cabeça. As galochas eram companhia até para os passeios na praia. Só de imaginar a textura de paralelepípedo, seus dedinhos chegavam a encolher, se agarrando na segurança dos sapatos de borracha.

Apesar do estilo irreverente, a sola grossa impedia que Luz sentisse o chão. Areia, grama ou asfalto eram o mesmo terreno reto, estéril e liso no qual seus pés se sustentavam. Em pouco tempo, ela parou de andar de bicicleta, já que as galochas prendiam suas pernas ao pedalar. Em seguida, abriu mão das longas caminhadas, encurtando a cada dia seus passeios.

Até o dia em que não cruzou mais o portão.

— Luz, você não pode fugir da chuva para sempre — sua mãe alertava, quando encontrava a menina brincando no quadrado de terra do quintal.

— Não só posso, como eu vou. O céu não me engana mais.

— Mas o céu não chove para pregar peças na gente, Luz. Ele chove de presente. Chove para regar as plantas, limpar as ruas, lavar a alma.

A menina olhava para o alto, enrugava o nariz e voltava a brincar. Sua mãe percebeu que palavra nenhuma chegaria ao coração de Luz. O solo estava árido desde a última tempestade.

Certa tarde, veio a chance de regá-lo.

A aglomeração de nuvens já anunciava a previsão do tempo. Luz calçava suas galochas, apoiada no parapeito da janela, orgulhosa de saber que, do lado de dentro da casa, não seria enganada.

— Luz, nós vamos dar uma volta!— sua mãe avisou enquanto ajeitava o cabelo preso em seu casaco.

A menina se virou perplexa.

— Agora, mãe? Você enloqueceu? Vai cair a maior tempestade!

— Não vai, é só uma garoa. Vem, vamos lá fora! Mas, dessa vez, nós vamos descalças.

Luz encarou a mãe, enquanto ela tirava os chinelos e se dirigia à porta. Encarou o quintal calculando quanto demoraria para chegar no chuveiro, caso desistisse. Encarou, enfim, suas galochas, sentindo o ardido das bolhas nos pés.

Luz saiu, enfim, num pulo do parapeito na janela.

Arrancou as galochas, deu a mão para sua mãe e colocou os pés, livres, para fora.

Fugir da chuva era sobrevivência; mas caminhar em sua direção, sem medo de se molhar, era um ato de coragem.

A garoa era fina e geladinha, acordando cada pedacinho de Luz. As gotinhas caiam em sua pele estourando feito bolhas de sabão uma pequena centelha brilhante que iluminava todo seu corpo.

Naquela tarde, Luz fez as pazes com o céu.

Abriu os braços, fechou os olhos e não teve mais medo da tempestade.

Deixou a água inundar.

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Laís Grilletti
Ninho de Escritores

Escritora e contadora de histórias, autora do livro Minu e a cidade sem tempo. Escreve histórias infantis que, vez ou outra, caem nas mãos dos adultos.