A maior ilusão das Narrativas

Felipe Carvalho
Ninho de Escritores
3 min readAug 19, 2021

Começo, Meio, e Fim. Não há engodo maior do que essa tríade, ensinada em aulas de Redação desde sempre, em todas as escolas, por todo o país. Na realidade, fins não existem, começos devem ser evitados, e os meios devem imperar na narrativa. É claro que eu exagero aqui, e faço como nas melhores narrativas: ignoro o começo e começo pelo meio. Então me permitam refazer convosco o raciocínio desde o começo.

Queres escrever uma narrativa comum? Muito bem, use o jogo de sempre: começo, meio e fim. Estará correto, liso e monótono. Tedioso. “Era uma vez… mocinha conhece mocinho… vilão derrotado e felizes para sempre”. Perdoem-me se vos causo náuseas.

Queres escrever uma narrativa sorrateiramente sedutora e impactante, surpreendente? Fique longe do começo, dê um final aberto, e crie um meio elaborado. Pois é assim a vida, e é assim que melhor seduziremos nossos leitores. “Erika conseguiu fugir, mas agora estava perdida em um país distante, de língua estranha, e teria ainda de muito se desdobrar para retornar ao lar…”

Troque o começo por promessas. Troque o fim por catarses e respostas (às vezes chamadas de conclusões, mas aqui o inglês nos serve melhor: payoffs — a resolução de uma promessa anterior). Coloque seu protagonista num meio já conturbado, turbulento como a vida real, e a história se desenvolverá naturalmente, sem esforços. Tenha o começo em mente, mas não no papel (assim como o fim). Deixe o leitor supor o começo sozinho, com seu próprio raciocínio e as pistas que você deixará no caminho. Deixe-o especular, e traga respostas à estas especulações ao final, se assim a história tiver prometido ou exigir.

Uso de modelo para este método as nossas próprias experiências de vida: sem um começo definido, somos pegos pelo turbilhão caótico de um mundo já em passo avançado de qualquer ponto “inicial”. E, ainda que aguardemos um abençoado fim, ele tarda, tarda, tarda a vir. A nenhum dos meus leitores, tenho certeza, jamais veio o fim. Vemos ele vir a outros, sabemos que ele virá um dia (e com certeza virá), mas nunca tal fim fez parte da experiência dos vivos. Sempre que há um “fim”, é subjetivo, relativo, incompleto. Há sempre um “após” depois. Vivemos em uma eterna cena de pós-créditos, um eterno epílogo sem ponto final. Sempre alguma história já acabou mas sempre há outra já começando.

Portanto, uma boa história não começa com o protagonista, não começa onde o protagonista começa, mas muito antes. O protagonista apanha para compreender o que já se passou. Tragédias, derrotas, vitórias, hecatombes, muito já aconteceu, e o herói investiga as cinzas, as consequências, os mistérios. Confronta parte do fim que ainda está vivo, ainda se desenrolando, uma enorme bola de neve no final da ladeira — já acertando o confuso personagem, que nem mesmo ouviu o estrondo que iniciou a avalanche.

Deste modo, toda narrativa se torna um mistério de detetive: pistas, deduções, hipóteses. Mesmo quando a narrativa se trata de um romance água-com-açúcar sem nada de sobrenatural, futurístico, ou bizarro, a inteligência do leitor é constantemente desafiada. Até onde sei, isso costuma cativar os melhores leitores. Para os outros, os leitores mais preguiçosos, não faltaram Era-uma-vezes e Felizes-para-sempres para os entreter enquanto dormem.

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Felipe Carvalho
Ninho de Escritores

Biólogo, professor, escritor. Filósofo? Louco! Primitivista.