A melhor amiga

Daniela Zanutto
Ninho de Escritores
4 min readNov 17, 2020

Já havia mais de um mês que todos os dias à tarde, Téo deitava-se na espreguiçadeira do quintal. Lá passava aproximadamente 1 hora, com o olhar fixo no céu e as mãos roçando a grama, como se acarinhasse as pequenas folhas. Sua mãe bem que tentava tirá-lo de lá, mas havia sido por insistência dela inicialmente que o filho começou a frequentar o quintal diariamente. “Precisa sair um pouquinho, filho. Tomar um sol.”

Desde então, todos os dias ele tomava sol no calor seco do cerrado. Era um ritual: às 14:46 ele despia a roupa, vestia o shorts de banho, calçava as sandálias de dedo, os óculos escuros e deitava-se na espreguiçadeira. A mãe satisfeita de tê-lo feito animar-se para os banhos de sol, incentivava; porém, já passava a se preocupar: a pele dele já se avermelhava e a marca dos óculos em sua face ressaltavam a queimadura causada pelo excesso de tempo no quintal. “Téo, vamos puxar a esprigueçadeira para a sombra?” “Não.”

Ana soube que seu filho não seria uma criança comum desde que o matriculara no berçário. Lá as cuidadoras não conseguiam alimentá-lo direito porque chorava demais no colo de qualquer uma. Nas rodas com os outros bebês ficava sempre sozinho, no mesmo cantinho, olhando para suas mãozinhas, apegado ao seu bichinho preferido: a baleia de plástico branco Balena.

Pouco tempo depois, veio o diagnóstico da neurologista: Transtorno do Espectro do Autista. Apesar de difícil, ajudou Ana a entender a personalidade introspectiva e repleta de manias de Téo. Julgando ser melhor para o pequeno, mudaram-se de um apartamento na capital para uma casa espaçosa e arborizada no interior de Goiás, onde idealizava acolher as necessidades do filho, poupando-o de julgamentos alheios para que futuramente pudesse ser inserido na sociedade num momento mais apropriado.

Na mudança de Goiânia, Balena ficou para trás. E desde então, Téo desviava o olhar até da mãe. Seguia com a cabeça baixa, cada vez mais ensimesmado e sem querer sair de casa. Piscina montada no quintal, balanço pendurado na árvore e até um escorregador instalado. Nada atraía Téo para longe de seu quarto, onde passava horas vendo e revendo uma animação na internet cujo personagem principal era uma baleia branca, igual Balena.

Ana tentou repor o brinquedo, mas foi em vão. A nova baleia comprada não era a Balena de Téo; não possuia a manchinha amarela na nadadeira esquerda; aquela que só ele sabia identificar. O novo boneco foi atirado pela janela do quarto mais de uma vez. Balena era insubstituível.

A preocupação da neuropediatra com o comportamento excessivamente recluso de Téo aumentou ainda mais ao notar a palidez quase lilás do seu paciente e a baixa vitamina D presente em seu exame de sangue. Desde então, insistia com Ana para que ela levasse Téo para brincar no quintal por pelo menos 1 hora todos os dias.

No dia em que conseguiu convencer Téo a sair para o quintal, havia chovido rapidamente e logo depois um lindo arco-íris formou-se podendo ser visto de qualquer cantinho do jardim da casa. Ana resolveu correr até o quarto do menino para lhe mostrar aquela maravilha da natureza que estava aparecendo entre nuvens brancas e cinzas no céu já novamente azul.

Aproximaram-se da janela e o filho então finalmente levantou a cabeça, ergueu os olhos ao céu e exclamou: “Balena!”

Convencido de que havia visto a melhor amiga, Téo quis vestir seu traje de banho para encontrá-la no jardim de casa e então brincarem na piscina. Ana não o contrariou em nada, tamanha era a felicidade em ver o menino sair do quarto depois de tanto tempo. Ajudou-o a compor-se de forma adequada para o banho de sol e deixou-o sair correndo em busca da baleia que ele dizia ter visto.

A partir do dia do arco-íris, uma nova rotina foi criada por Téo: todos os dias às 14:46 ele despia a roupa, vestia o shorts de banho, calçava as sandálias de dedo, os óculos escuros, deitava-se na espreguiçadeira à espera de Balena e depois entrava na piscina para brincar. Ana não via nada dentro da piscina com ele, mas o menino falava e ria, espirrava água para os lados e antes de voltar para dentro de casa sempre dizia sorrindo e olhando para o céu: “até amanhã Balena!”

Assim seguiram-se as tardes até que chegou o dia para o qual havia sido anunciada a chegada de uma forte frente fria na madrugada, que mudaria completamente o tempo, amenizando a secura do ar e trazendo a umidade necessária para todos no cerrado. Todos menos Téo.

Nesse dia à tarde o menino estava extremamente agitado, repetindo que Balena não poderia se atrasar, não poderia faltar. Quando deu 14:44, o cinza do céu despencou em gotas pesadas, alagando o jardim e impedindo qualquer tentativa de Téo sair para encontrar a amiga no quintal de casa. Encostado à grande janela de correr da sala, o menino chorava junto com o céu.

Com todo o cuidado, Ana aproximou-se do filho, abraçando-o por trás e o acolhendo em silêncio. Téo entregou-se aos braços carinhosos da mãe e espontaneamente explicou sua tristeza à ela: “No cinza ela não vem.” Cansado, após um banho quentinho, adormeceu mais cedo que o habitual.

Quando despertaram no dia seguinte, estava tudo como sempre no quintal: a grama verdinha, os pássaros cantando, o céu azul e poucas nuvens brancas no céu. “Téo, hoje a Balena vem? Me mostra?” Às 14:46 se prepararam, vestiram trajes de banho, sandálias, óculos escuros e desceram as escadas mãe e filho de mãos dadas, rumo ao quintal onde deitaram-se juntos na espreguiçadeira. “Lá em cima mamãe, olha a Balena nadando no céu!”

E Ana enfim entendeu.

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Daniela Zanutto
Ninho de Escritores

Meus textos falam sobre o feminino e as suas implicações de uma maneira muito pessoal.