A Partida

Felipe Carvalho
Ninho de Escritores
4 min readNov 26, 2020

A mudança veio como uma surpresa. Um verdadeiro espetáculo de cores e luzes. Inexplicável, misterioso, e belo. Ninguém pôde prever que era uma despedida.

Aconteceu em todos os lugares do globo ao mesmo tempo. Clarões, relâmpagos e esferas coloridas surgindo no ar. Dos móveis, das ruas, mesmo das roupas. E subindo aos céus. Alguns lampejos subiam rapidamente, como um relâmpago invertido. Outros foram morosos, sendo observados, medidos, e retratados com fidelidade.

Azul, vermelho, verde, branco, preto… e muitos mais tons e tons de cores diversas e magníficas. Subindo do plano terrestre para o plano celestial.

Deixando-nos.

Aos poucos, um por um, o vislumbre cedeu ao desespero, quando observamos em choque o resultado do fenômeno. O mundo tinha se tornado monotônico. Onde era dia, o céu não era mais azul, mas apenas um tom cinzenta-bege. Onde era noite, a noite não era mais escura, mas apenas um cinza-escuro desconfortável e incômodo. As pinturas das casas, as tinturas dos tecidos, os tons das refeições. Tudo havia sumido.

Algumas horas depois, uma segunda mudança, detectada pelos cientistas. As cores pousaram na lua, e a coloriam, tingindo o branco lunar com arcos-íris inimagináveis.

Os primeiros dias foram de puro pânico. Não tanto porque o tom pastel onipresente e asfixiante impedia o funcionamento da sociedade, mas porque nós não sabíamos como reagir a isso. Apesar das ondas de suicídios, sobrevivemos. Aos poucos e aos turbilhões, o mundo se acalmou. Mesmo a tais circunstâncias a mente humana pode se acostumar, normalizar.

Sinais de tráfego foram trocados por símbolos. Muitos empregos sumiram, dependentes da paleta de cores. A princípio, muitos designers e artistas se empenharam corajosos em fazer o possível com a monocromia: figuras, padrões, formas. Entretanto, sem as velhas amigas coloridas de seu arsenal criativo, os esforços foram em vão. O tédio sempre vencia.

O vocabulário acompanhou. Os nomes das cores foram lentamente sendo esquecidos, com pouquíssimas exceções. No lugar, apenas duas novas palavras em cada língua: uma para os tons mais claros do que ainda se reconhecia como dia, outra para os tons mais escuros do que antes era chamado de noite. Surgiram poucas novas profissões, encarregadas em codificar em símbolos práticos tudo que antes as cores comunicavam com clareza. O ruborescer da vergonha se tornou um gesto, e também o da raiva. Objetos de metal passaram a ser manufaturados com um padrão distinto, contrário ao das madeiras. Alguns tentaram repetir o efeito alcançado em óculos para daltonismo, mas fora em vão: nem com lentes e truques era possível ver cores novamente.

É válido dizer que os aportes que as cores faziam à nossas emoções nunca fora resgatados. Até por isso, algumas das antigas cores se tornaram novas divindades. Vermelho, divindade do amor e da raiva, do sangue e da luxúria. Azul, divindade da paz, das águas. Amarelo, divindade da alegria, do Sol. Verde, divindade da Natureza. Os ritos e esforços que se seguiram tentavam resgatar as emoções perdidas no abismo da monotonia, mas, como era de se prever, foi também tudo em vão.

Passamos a viver vidas que nem mesmo eram melancólicas, e chamá-las de monótonas seria um pleonasmo. As raras exceções eram astronautas, eventuais sortudos com oportunidade de caminhar nos campos coloridos da lua. A dádiva, porém, tinha dois lados, e muitos se suicidavam depois de retornar à Terra.

Anos depois, um famoso historiador publicou um grande livro sobre a mudança. O sujeito colecionou uma infinidade de fatos e estatísticas, a princípio apenas curiosos e supérfluos (monótonos como tudo mais), sobre a partida das cores. Sobre como nosso mundo reagiu, como se adaptou. Mas seus leitores logo se viram polarizados por algumas sugestões feitas no final.

Pois o historiador também notou alguns dados pouco mencionados ao público, e com eles traçou algumas hipóteses.

Os fatos? A ausência de novas guerras. A diminuição dos conflitos. Racismo? Nem mesmo lembramos que nossas peles costumavam ter cor. A queda de nacionalismos, e mesmo de fronteiras. O mundo cinzento-apastelado era igual em todo lugar, semi-deprimente em todo lugar. Não havia mais lugar para disputas territoriais, ideológicas, ou mesmo de vizinhança, em parte porque ninguém tinha mais apego a nada com força suficiente para brigar por algo, mas em parte também porque muitos conceitos morreram com a partida das cores. Nós não nos agredíamos mais uns aos outros por quase nada. Muito menos por conceitos antiquados como a cor da pele ou a cor de bandeiras ideológicas e nacionais.

E as hipóteses do historiador? Simples, e bastante sensatas: as cores tinham nos deixado porque nós não as merecíamos mais. Porque desprezamos um mundo lindo, brigando por qualquer tolice. Sujando as cores naturais com nossos poluentes e lixo. Queimando o verde, sangrando o vermelho, apagando o azul. Porque usamos pequenas distinções de cores naturais para dividir pessoas, nações, existências.

Se não éramos mais capazes de viver as distinções, e dividir em paz um paraíso terreno multicor, pujante e diverso, teríamos de nos contentar com o bege onipresente. Apaziguador, constante, e perpétuo. O acinzentado pelo qual ninguém mataria.

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Felipe Carvalho
Ninho de Escritores

Biólogo, professor, escritor. Filósofo? Louco! Primitivista.