A pata da gazela

Suzane Morais
Ninho de Escritores
4 min readNov 10, 2020

– Olá, doutor Shalão, o senhor tem que me ajudar! Não consigo dormir, nem comer, sou atormentado por uns pés! Uns pés de mulher!

– Pode se sentar senhor Horácio. Vamos começar do início. Do que você tem medo?

– De galochas amarelas.

– Humm entendo. Esse medo está ligado a um episódio específico?

– Sim, doutor. Tudo começou há alguns meses quando estava indo para o trabalho. Chovia muito, então fui andando até o escritório, afinal não morava longe. Próximo ao serviço, vi sair do prédio da minha empresa uma mulher linda. Ela correu graciosamente pela calçada, atravessando a rua aos pulos. Vestia uma longa capa de chuva e, nos pés, um par de galochas amarelas. Não sei o que me deu. Nunca fui uma pessoa impulsiva, mas decidi seguir aquela criatura. Corri para alcançá-la, com o coração acelerado. Podia mesmo sentir a adrenalina nas veias, as pupilas dilatando, e o aumento da saliva. Eu me sentia estranho, como se eu fosse um leão perseguindo a presa no Serengeti. Mas, depois de dois quarteirões, ela tomou um táxi e foi embora. Eu mal podia acreditar que todo aquele esforço seria em vão. A frustração me consumiu. Dei um soco no ar, chutando a água da calçada e maldizendo a minha desgraça, quando vi um pé de galocha amarela, caído perto do meio-fio, bem no lugar onde a figura misteriosa chamou o táxi. Peguei a bota rapidamente para analisar de perto. Era dela! Devia ter se soltado de um dos pés molhados e, na pressa de entrar no carro, caiu. E que alegria eu senti! Sim, não era uma galocha tradicional: tratava-se de um calçado refinado, de um amarelo delicado com desenhos de borboleta e um pequeno laço lateral com o salto e o bico afinados, o que conferia ao sapato um ar de ternura e ousadia ao mesmo tempo. Eu me aproximei e cheirei o aroma de talco, pensando no pezinho lindo que seria o seu dono. Desde então, não tive mais paz, não consegui parar de sonhar com a pata da gazela.

– Humm e desde quando você tem fixação por pés?

Bom, doutor. Desde que me lembro por gente. Na verdade, começou na adolescência, quando vi um scarpin vermelho pela primeira vez. Fiquei impressionado. A dona era a minha vizinha. Depois, me apaixonei por uma sapatilha rosa na escola. No ensino médio, fiquei por um tempo com uma azaleia verde e um all star azul, sabe, coisa de garoto. Namorei três anos um Oxford nude na faculdade, depois conheci um mocassin cinza clássico feito de couro com cadarço e tudo, mas não deu certo e eu desisti por um tempo de procurar sapatos.

– Humm e você voltou a ver a moça da galocha amarela?

Sim, doutor! No mesmo dia da chuva, eu voltei correndo para o escritório, perguntando sobre a mulher, afinal ela tinha saído de lá. Todos me olharam estranho, pois eu devia mesmo parecer um maluco todo molhado com um pé de galocha amarela na mão. Mas, eu não me intimidei e continuei perguntando até descobrir que a dona do calçado era a Laura da contabilidade. Como assim eu nunca tinha ouvido falar dela? Provavelmente saiu para ver algum cliente. No final do expediente, já de roupa trocada e arrumada, fui conhecer a deusa dos meus sonhos. E fazia jus ao que tinha imaginado: era linda! Tinha longos cabelos cacheados, um belo par de olhos castanhos e um porte de bailarina, que eu já havia identificado pela corrida na chuva. Então, eu me apresentei, mas não consegui desviar os olhos de seus pés, que já não vestiam mais galochas amarelas. Ela percebeu e pediu desculpas pelo sapato velho, pois havia perdido um dos pés do calçado na chuva mais cedo e vestiu um tênis velho que deixava no armário para algum imprevisto. Eureca! Tentei disfarçar ao máximo o meu contentamento e a convidei para sair. Ela aceitou e disse que já me conhecia de reuniões passadas, elogiou o meu trabalho como vice-presidente de comunicações e fomos jantar. Ela não era apenas bonita, mas também inteligente. Depois desse dia, a gente se viu várias outras vezes e ela sempre vestia um sapato fechado. Um dia, depois de um encontro no cinema, ela me perguntou se eu queria conhecer o apartamento dela e eu aceitei. Estava mais feliz que leopardo caçando gnu depois da seca. Lá, a gente falou sobre vários assuntos, tomou um vinho, mas a curiosidade de saber como eram os seus pés me corroía. Quando o clima começou a esquentar, não me contive e pedi para tirar o seu sapato. Ela concordou. Mas, ao retirar a bota de cano curto que ela vestia, tal foi a minha surpresa que quase caí do sofá. Os seus pés eram medonhos: tinham seis dedos virados para dentro, que montavam uns nos outros, com calos nas solas que se comunicavam com joanetes nas laterais, desenhando garras de gárgula. Ela percebeu a minha reação, mas antes que pudesse falar alguma coisa, eu, desajeitadamente, dei uma desculpa e fugi de lá. Desde então, não consigo mais encarar a Laura, nem atendo as suas ligações. Eu tenho muita vergonha disso, mas quando vejo galochas amarelas, eu vomito. Qual é o meu problema, doutor?

– Humm o seu caso é de Transtorno de Romantinia aguda.

– E é grave, doutor?

­– Gravíssimo.

– O senhor vai passar algo para tomar?

– Oh sim! Vou te receitar J.A. duas vezes ao dia. Recomendo uma dose de Iracema para ver como você responde ao tratamento e, se der resultado, passamos para Lucíola e Senhora, ok? Mês que vem você volta para tratarmos o seu complexo de Rubem Fonseca. Próximo!

– Olá, doutor Shalão, o senhor tem que me ajudar! Não consigo dormir, nem comer, sou atormentado por uns olhos de cigana oblíqua e dissimulada! Uns olhos de ressaca!

– Pode se sentar senhor Casmurro. Vamos começar do início. Do que você tem medo?

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