A presença, a mata e eu

Ana Paula Maciel Vilela
Ninho de Escritores
4 min readApr 27, 2021
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A mata fica mais fechada à medida que prossigo.

Lembro quando caminhava com meu pai durante minha infância nos finais de semana na fazenda. Íamos a cavalo, os deixávamos descansando à sombra de alguma árvore e nos assentávamos próximo à entrada da mata para tentar ver algum animal silvestre enquanto a tarde caía.

Naquelas caminhadas conversávamos sobre muita coisa: como minha avó, sua mãe, estava implicante e nunca me deixava regar as plantas e nem comer gelatina quando ia à sua casa. Ou como meu avô tinha sorte no jogo de bicho pois naquele mês já acertara duas vezes, uma graças a um sonho meu envolvendo um jacaré e uma vaca que, na sua interpretação, tinha a ver com o pavão. Na cabeça. E ainda ganhei dinheiro para comprar suspiro colorido na venda da esquina.

Naquelas andanças eu aprendi muita coisa: a identificar qual semente era de qual árvore, a seguir carreira de formiga para descobrir o olho do formigueiro, que formiga cortadeira toma conta depois de uma queimada quando a terra fica fraca, que tucano gostava de comer as flores da embaúba e que estas árvores cresciam para todo lado ali no cerrado, eram árvores espontâneas. Aprendi também que o gado gostava de mastigar as sementes do baru, outra árvore bonita por ali e ele contava histórias de quando era criança crescida na roça e de como meu avô fazia com que ele e o irmão trabalhassem muito.

Me disse que um dos trabalhos deles, crianças, era debulhar o milho seco, tirar o grão da espiga e ir colocando no jacá depois de tirar a palha seca. Que isso provocava uma coceira terrível e meu avô não dava moleza para eles. E se não fizessem direito ainda levavam surra de cinta. Ouvia isso assustada. Meu avô tinha a fisionomia do melhor avô do mundo. Pensava, bem, avô é diferente de pai.

Certa vez estávamos lá abaixados e o tamanduá foi se aproximando. Parou a certa distância de onde estávamos, em um enorme cupim e ficou lá revirando a terra por muito tempo. Não se cansava de comer os bichinhos e aprendi também a esperar. Ter paciência porque já estava com as pernas dormentes quando ele se afastou a uma distância segura para que pudéssemos voltar para a casa.

A mata fica mais fechada à medida que prossigo e ouço vozes.

As vozes do meu pai contando causos enquanto apontava para uma árvore ou para alguns pássaros que passavam em bando. Ouço minhas perguntas de criança sadia e curiosa, ouço até a risada do meu avô em uma das vezes que foi conosco nesses passeios, aventuras para mim. Meu avô era muito bom em fazer enxertia. Quando ia conosco para fazenda era corriqueiro encontrá-lo agachado em algum ponto do pomar fazendo melhoria nas mudas. Ora concentrado com o cigarro no canto da boca, ora me explicando que aquela laranja não ia ter semente e que eu ia poder chupar sem medo de engasgar.

A mata fica mais fechada à medida que caminho e sinto cheiros.

O cheiro do meu avô era cheiro da binga que acendia o cigarro e da fumaça que saia devagar das suas narinas.

O cheiro do curral era o meu preferido. Adorava ver a ordenha das vacas pela manhã cedinho. Descia correndo com a caneca nas mãos contendo achocolatado em pó para receber aquele leite quente e espumoso. O vaqueiro Bastim conversava com cada vaca e as chamava pelo nome. E depois de terminada a ordenha abria a porteira onde estavam os filhotes e ia chamando cada bezerro que corria para o lado da mãe e eram soltos no pasto para passarem um tempo juntos e poderem também mamar.

Outro aroma da minha infância era do doce de leite que ia se tornando escuro e puxento no tacho de cobre enquanto minha mãe e minha avó se revezavam para mexer e não deixar agarrar no fundo. E aquele tacho cheio de leite, para meu desespero de criança gulosa, ia sendo reduzido à medida que o doce engrossava e minha preocupação era de que não daria para quase nada.

A mata fica mais fechada à medida que caminho e os vejo.

Todos juntos assentados embaixo da árvore enorme, fazendo piquenique. Meus avós, a Lúcia, ajudante da minha mãe por anos e nossa mãe de criação, meus irmãos, minha mãe, meu pai, meu tio Fernando passando ali as férias com a família, as primas, os filhos do Bastim, crianças como nós, nossos companheiros de pegar girino debaixo da pinguela, de jogar manga e goiabas caídas no chão para os porcos no chiqueiro, de correr morro acima e abaixo fugindo de algum índio, de brincar no balanço feito de corda e pneu na porta da casa deles. Os vejo e me alegro com a presença tão forte de cada um. Com os sorrisos, as risadas, o som de suas vozes. Tão vivos.

A caminhada na mata evoca sempre minha infância, os dias felizes na fazenda Estrela. Presença de pessoas queridas, dos valores que me foram passados na convivência, nas conversas, nas broncas, no lidar com os animais, no respeitar os mais velhos e no amor à natureza, à terra, à família.

Em meus cabelos recebo o afago do vento, na pele o arrepio ao sentir o toque de muitas vidas, o som da mata, o sussurro das vozes, o pulsar do coração. A presença.

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