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A Tormenta

Ana Paula Maciel Vilela
Ninho de Escritores
3 min readMay 18, 2021

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Se agitado é o sono,
Se pela manhã, em desânimo e desalento, o corpo teima não se mover,
Avisto pela janela do quarto,
A tormenta.
Disfarçada atrás dos galhos do pinheiro,
Espreita.
A tormenta que se avoluma
Com ruídos, choros e desespero,
Silencia.

Em outro tempo
Tormenta irmã me alcançou,
Mesclada de memórias e risadas
Aos poucos, ruidosa se modificou.
Em tempos mais remotos
O som do salto do sapato,
Alto, no corredor
Passos apressados
O som da porta que fechou.

A rotina, não sabida, tão segura!
O carro cheio
Filhos e vizinhos
Em direção ao colégio
Conversas alegres
As aulas do dia, boas ou ruins
Intervalo, recreio, jogo na quadra, suor
Vida
A rotina. Não sabida. Saudosa.

Trabalho, trabalho e trabalho.
Assim traduzia-se
A importância de sua vida.
Ali esquecia os infortúnios,
Esquecia o dia a dia,
Esquecia as mágoas,
O casamento,
As traições,
O que almejava, mas não se atrevia.

E as horas passavam
Os dias eram vividos, envoltos
Em aulas, livros, cursos.
Os filhos iam crescendo
Com o cuidado de que nada lhes faltasse.
Nada.
Pouco ficava em casa
Atarefada entre a vida de professora e de estudante
Da faculdade chegava tarde.

Tempo para pensar?
Conversar?
Resolver as coisas?
Depois.
E o depois se transformou em dias
Meses, anos
Transformou-se em uma vida
E não deu tempo.
Tempo de ser feliz.

E quando as aulas foram retiradas,
Quando o que dava sentido à sua vida
Desapareceu,
Quando não mais precisava armar o despertador
Se arrumar, preparar o material
Tomar café com a família e ver todos no carro mais um dia,
Quando o ar lhe faltou,
Ficou mais fácil
Esquecer.

Passou, aos poucos, a não lembrar.
Confundia-se.
Repetia.
Até dos livros
Ah! Até dos livros já não queria mais saber.
Um dia me disse
“Das coisas ruins que vivi,
prefiro não mais lembrar”.
Mas, e das boas?

E o outono chegou
Hoje uma lua cheia linda ilumina tudo lá fora,
Mas uma nova tormenta é vista pela janela.
Ela se esconde atrás
Dos galhos do pinheiro.
O recolhimento se faz necessário.
Para nos refazermos em tempos de pandemia,
Tempo em que o mundo mudou,
Tempo da aprendizagem necessária que não acontece.

Quando observo a lua
Percebo a nova névoa que, aos poucos,
Se aproxima.
E em mim dói o estômago
Dói a cabeça
Dói o coração
E a angústia vem devagar
O sono fica inconstante
Inconstante como tudo

A fala dele é a mesma e me assusta:
“Prefiro esquecer as coisas ruins que já vivi”.
E penso, mas pai, e as boas?
Me aproximo da janela
Sinto a brisa se transformando em vento
O vento se fazendo vendaval
E em mim, fora do lugar os batimentos cardíacos,
A pressão arterial que, desorientada,
Procura aquietar-se.

A tormenta nos ronda.
A tormenta é o meu sufoco,
Uma vez mais.
Consultas, exames, testes, medicamentos.
A tormenta tem nome e parece querer abraçar ambos.
Enquanto um diagnóstico não é definido, os dias passam.
Ele levanta cedo, se arruma, vai para o sítio.
Ainda independente, cuida da sua vida,
Entre um esquecimento ou outro.

E rega suas plantas,
E sorri para as galinhas d’Angola
Enquanto o rodeiam para receber o milho.
Vai ao pomar
Apanha alguma fruta
Lava no tanque.
Habita seu corpo, sua casa
Sabe quem é.
Ele sabe quem ele é.

Enquanto a névoa se forma ao redor,
Os gorjeios, relinchos e mugidos, ouve.
Identifica. Avista no galho o pássaro preto de uma perna só,
Tão antigo por ali e pensa, será o mesmo?
Deitado na rede contempla as flores
Os hibiscos coloridos, os ipês
Todos plantados por ele.
Fecha os olhos e descansa
Pensando em sua vida.

Meu pai pensa no que vai fazer amanhã,
Enquanto a tormenta se aproxima.

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