Amélie

Laís Grilletti
Ninho de Escritores
5 min readOct 26, 2020

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Era dessas histórias que quem viu não pode provar, e quem ouviu escolheu acreditar. Por boa-fé, agrado ou diversão. Aconteceu há muito tempo, numa cidadezinha sem importância, no interior de algum lugar.

Chamava-se Amélie.

De palavras ocas, se comunicava somente com as duas bolinhas de gude que levava nos buraquinhos dos olhos. Todos os médicos de algum lugar, porém, conheciam a história da menina de olhos grandes que nada falava.

Sua mãe fez de tudo para que Amélie aumentasse o apetite pelas palavras. Não achava bom criança que cresce em jejum de fala. Experimentou todos os tratamentos, dos mais tradicionais aos alternativos. De filmes de terror que desamarram os gritos a bolo de chocolate oferecido só com o primeiro eu-quero.

O saldo de mil experimentos pouco de nada adiantou. Diante da rouquidão dos pais, exaustos em buscar pela voz da menina, o médico da cidade ao-lado fez o diagnóstico definitivo. Quando palavra entala na garganta, só com força de sentir para poder soltar. O tempo daria a Amélie a ânsia implacável de ser ouvida, desatando os verbos enroscados nas paredes da garganta.

Apesar do diagnóstico, a família não desistiu. Todos os dias os irmãos vinham com novas ideias. Faziam apostas de quem conseguiria tirar sequer uma gargalhada da boca de Amélie. Enchiam a menina de perguntas, inventavam karaokês e coçavam sua curiosidade com o-que-é-o-que-és, mas suas cócegas não faziam nem sussurro. Amélie olhava no fundo da alma que morava atrás dos outros olhos, dava um meio sorriso, volta e meia e ia embora.

Quem conta essa história, porém, verdade admite. As palavras não fugiram de Amélie. Elas até existiam. Uma radiografia mostrou alguns imperativos engasgados na laringe, da época em que os irmãos deixavam ela de fora da brincadeira. Outros verbos monossilábicos se amarravam nas cordas vocais, enquanto centenas de substantivos balançavam suas amídalas.

Mas o laringologista descartou a viabilidade da cirurgia ao notar que a maior parte do não-dito era de proparoxítonas. Levariam horas para extraí-las, com risco de um acento circunflexo arranhar as vias respiratórias. A equipe médica receava, ainda, que mesmo após o procedimento, novos ditongos reicindissem de tudo que Amélie silenciou.

Sua mudez era assunto muito falado pelas ruas, mas de pouco resolver.

O que a cidade desconhecia, contudo, é que dentro de sua cabeça, Amélie era tagarela. Falava o dia inteiro com tudo o que encontrava. Na folhinha de seus pensamentos, era sempre Carnaval. No entanto, aqueles não eram pensamentos de se pensar em palavras. Eram de sentir em imagens e sensações.

Amélie trocava qualquer diálogo substantivo pela linguagem do sutil.

Os passarinhos respondiam aos gorjeios quando espalhava pedacinhos de fruta para se alimentarem. Com o rio trocava carinhos, deixando que seu fluxo fosse música alta tocando nos fundos do quintal de sua mente. Perdia a hora brincando de mímica com as nuvens e esquecia de si na preguiça, entregue ao calor do sol depois do almoço.

Amélie tocava a vida com as duas mãos, por inteira, sem palavras-guardanapos.

Certa noite de tempo quente, Amélie era só pontinhos de luz dentro de si. Sozinha no quintal, quando todos já se preparavam para sonhar, ela papeava com as estrelas os sonhos que sonhava acordada. Foi quando a menina avistou um rasgo branco de luz no céu. O ponto luminoso caíra no final do horizonte, em meio aos arbustos baixos do quintal.

Mesmo no pouco enxergar, Amélie deixou que a luz a guiasse. Quanto mais perto chegava, mais seus olhos bola de gude iam se fechando, protegidos do farol luminoso. A claridade era tanta que luzia o lado de dentro da menina, do coração cheio de amor às palavras retidas na garganta.

Foi então que Amélie descobriu. O rasgo de luz era uma estrela recém-caída do céu. Com as duas mãos, pegou a centelha do chão e trouxe para perto do peito. Quente como abajur aceso a noite toda. Pensou em subir no morro para atarrachá-la de volta ao céu. Mas seu tamanho ainda não permitia o alcance, e era seu pai quem costumava trocar as lâmpadas de casa.

Deixar a estrela no sereno estava fora de questão, o frio gelado da manhã poderia apagar sua luz. O calor no seu peito lhe trouxe, então, uma ideia.

Com cuidado puxou seu colchão do quarto para o quintal, levando com ela travesseiro e lençol. Esticou tudo na porta da casa, onde o telhado não acoberta o céu. Deixou que sua amiga estrela contemplasse o manto escuro do alto, sentindo-se mais próxima de sua família que, naquele momento, já devia ter dado por falta dela no céu.

Naquela noite, os sonhos mais bonitos de Amélie vieram ainda de olhos abertos.

Qualquer imagem da realidade se derretia em sua tela mental. Sonhava flutuar com o vento enxergando o mundo do mais alto. Dançava entre as nuvens como se reencontrasse antigas conhecidas. Enxergava em cada ponto de luz distante um novo Universo. Brilhante, cósmico, sem-fim.

O espetáculo astral levou a menina a fechar os olhos apenas por um instante. O sono a envolveu como se deitasse no colchão de estrelas, embalada pelo Universo.

Sonhava a volta para casa. Ela também uma estrela caída, habitando um corpo de menina.

Levitava do chão ao firmamento para reencontrar sua verdadeira natureza estelar.

Amélie descobriu-se, enfim, constelação. Então adormeceu.

O sol da manhã seguinte bateu à porta das pálpebras de Amélie. Seus olhos bola de gude se abriram para o novo dia, mas a luz que protegia seus sonhos se apagara. Sua amiga estrela não estava mais lá. Os sonhos fulgurantes foram anoitecendo no centro do peito de Amélie. O sentir era tão dolorido que o Carnaval de seus pensamentos trovejou.

Seus olhos choveram uma chuva salgada.

Por três dias seguidos, a chuva inundou o rosto de Amélie. Nada no mundo fazia a chuva cessar. Os irmãos preocupados despejavam palavras de conforto, otimismo e esperança, torcendo para que os verbos secassem o sentir. Mas a menina mal escutava diante do temporal interno que abafava até o barulho do rio.

Sua mãe, no entanto, aprendera a ouvir o silêncio de Amélie. Em meio ao choro, deixou somente lápis, papel e um beijo na cômoda ao seu lado.

No terceiro dia de chuva, a água acabou. Seu coração tinha secado todas as lágrimas que jamais chorou. Mas a tristeza do descobrir-se longe de casa continuava ali.

Naquele instante, as palavras explodiram de Amélie. Saiam pelas suas mãos, contornavam o papel, tentando conter a imensidão que desaguava de seu peito. Ela sabia que as letras enfileiradas não eram suficientes para represar a saudade que tinha de ser estrela.

Mas distante de casa, escrever era sua única maneira de encostar no céu.

Naquele dia, passada a chuva, Amélie fez as pazes com as palavras.

Começou a usá-las como caixinhas de guardar sentimentos, como os vidrinhos de perfume da sua mãe. Assim, ao folhear as páginas escritas, sentiria o aroma do que não se pode mais alcançar com as mãos.

Com o tempo, a radiografia mostrou que as palavras se desprendiam da corda vocal de Amélie. Mas não saiam pela boca. Eram puxadas pelas mãos, ávidas em escrever saudades.

Na cidadezinha sem importância, Amélie descobriu a poesia.

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Laís Grilletti
Ninho de Escritores

Escritora e contadora de histórias, autora do livro Minu e a cidade sem tempo. Escreve histórias infantis que, vez ou outra, caem nas mãos dos adultos.