Beijo cinematográfico
Já tinham anos, e olhos ensinados para os filmes. O garoto tímido e recluso já contava dois anos de um namoro que florescia em olhos e caminhos. Quem diria? Mas, enfim, tudo é possível. Ela ensinava cada pedaço de sua vida para o garoto, e ele só tinha uma opção que o amor trazia: aprender! Mesmo tímido, seus olhos brilhavam na presença dela, que era irradiante, parecia alguém querendo alegrar a vida inteira, não tinha pudor em esbanjar sua alegria. As perguntas dos demais apareciam, bem verdade, por que não entendiam uma mulher tão expansiva com alguém tão retraído… No entanto, era justamente por isso que fazia sentido, ele absorvia o calor dela. Os olhos dele passaram a aprender uma das maiores paixões dela: cinema.
Fosse na tela de projeção, fosse nas telas domésticas, devoravam as luzes dos filmes com tal fome e voracidade que só fazia aumentar o amor mútuo como o entendimento das sutilezas cinematográficas. Iam dos clássicos em preto e branco até as propostas mais inovadoras. Tudo valia, desde que trouxessem palavras e debates. O suprassumo daquilo tudo era a discussão sobre os filmes, e estavam ficando cada vez melhores nos argumentos e ideias, como no amor que parecia só crescer.
Eram amantes dos livros também, ela para explorar com outras pessoas cada nova leitura, trazendo uma infinidade de sutilezas e perspectivas ao Uni-Verso que só aumentava a personalidade esfuziante dela, enquanto ele a cada leitura fazia em si um tesouro único e só seu de pensamentos e ideias, guardados com tamanha segurança e diligência que deixaria qualquer banco em maus lençóis. E ele tinha dado a uma única pessoa a chave do seu cofre.
Será que era amor? Era o que pensava, porque por não ter referências sociais, era um recluso, o que sentia era uma tremenda confusão. E tinha medo de até isso abrir para ela, pois nunca se sabe… Mas os olhos se entendiam. As mãos se entendiam. Os corpos se entendiam. Não sabia muito como a Vida funcionava, mas tinha em si o calor de algo inexplicável, e era um sorriso disfarçado entre a mão do carinho e a mão da despedida. Não queria outro caminho, talvez nem pudesse.
Por vezes sussurravam as teorias mais mirabolantes sobre tudo que nem sequer sabemos. Mas era feito com fervor… Não tinha descanso, era dia após dia lançando tudo que ressoava ao Cor-Ação. Nem nos maiores sonhos de menino tinha visto esse caminho… Agora tinha de equilibar o céu com o medo do precipício. Leve ansiedade surgia, e se o escuro tivesse próximo? Quem iria brilhar? Foi um relance de alma. Foi quando ela veio no jeito mais amoroso e faceiro que havia sentido de alguém em toda Vida, aquilo ecoou:
- Vamos assistir “Bonequinha de Luxo” lá no centro?
- Sim… — não tinha como ele negar, esboçando um sorriso singelo.
O caminho foi todo recheado daquelas trivialidades que adensam o afeto e intimidade com alguém. Pareciam querer gritar ao mundo aquela alegria, mas tinham a certeza que não entenderiam, afinal a alegria não se entende, se vive… Caiu um silêncio sobre eles, e só se abraçaram, sem nem quererem buscar palavra. Os minutos se foram para encontrar um balde de pipoca, as luzes penduradas vasculhando a sombra do casal, como se dançassem uma dança de emoções e passos ritmados no ritmo do amor, que é o único ritmo que permite qualquer dança. Tudo para ele parecia uma vertigem saborosa, como se escalasse não uma montanha mas um sonho que se sabe estar sonhando. Tentava conduzir, mas estava rendido. Riram juntos de uma criança que falava asneiras ao pé da mãe, riram de um cartaz mal afixado que parecia indicar um filme de terror, mas era uma comédia pastelão, riram do sorvete que escorria e de um cachorro de rua lambia no chão. Pareciam estar possuídos por um estado entorpecente, mas de uma droga tão única que trazia um estado que todos procuram e poucos acham…
Ela puxou o garoto para dentro da sala de cinema, como se estivesse numa corrida por algo surpreendente, e ele se deixou levar pensando bem rápido na sorte que tivera de ter ido a um encontro de escritores há alguns anos. O filme engoliu tudo, palavras, gestos, movimentos, exceto o abraço. Pareciam ocupar uma cadeira só. O filme transcorreu e a “Bonequinha” verdadeira estava do lado dele, mas não era de luxo… Quando saíram, a chuva fez com que os dois se entreolhassem e pensassem a mesmíssima coisa: “Vamos nos beijar na chuva?”. Não esconderam do público alheio que se escondia da chuva o sentimento que embalava os dois. Ele olhou e perguntou: “É mais Bonequinha de Luxo ou Cantando na Chuva nosso beijo?”, ela deu risada por ele lembrar do filme da semana passada, e não pensou muito: “Bonequinha de Luxo”. “Por quê?” disse ele. “Porque somos um casal improvável, e por isso mesmo perfeitos um para o outro…”. Ele não quis esticar assunto, realmente era pertinente a ideia, quando resolveram se enlaçar novamente em um beijo molhado sem previsão de terminar…