Carta à minha madrinha de outrora

Daniela Zanutto
Ninho de Escritores
3 min readFeb 18, 2021

São Paulo, 30 de Janeiro de 2021

Querida tia Emília,

Hoje estou escrevendo para matar saudades. Sabia que hoje é dia das saudades? Descobri isso por acaso nas redes sociais, correndo o dedo pelo meu feed do Instagram. Oportuno, não?

Vivendo este início de década pandêmico, o melhor mesmo que podemos fazer é nos ver em nossas chamadas de vídeo ocasionais, mas preciso dizer que as saudades que sinto não têm relação com esse distanciamento físico. O que tem me apertado o coração é um sentimento de nostalgia, uma vontade de voltar ao passado e reencontrar a tia Emília da minha infância e adolescência.

Você sempre foi meu exemplo de vida, o que deixava a minha mãe muito enciumada. Sua leveza, bom humor e até excentricidade encantavam a — quase — todos que a conheciam! “Sua tia não tem jeito, Alessandra! Leva a vida na brincadeira!”, era o que mamãe dizia quando a via chegar apresentando um novo namorado, comemorando uma mudança de emprego ou até mesmo quando nos convidava para um passeio sem os pais.

Esses passeios eram tão especiais, tia! Tenho certeza que nossos pais fingiam não gostar, mas amavam quando você carregava o carro com todas as crianças e levava a gente para algum lugar longe deles, que podiam descansar do infinito trabalho parental por algumas horas ou dias. Minha lembrança mais querida é de uma viagem que fizemos a sós, quando eu já tinha 13 anos e você havia terminado o namoro relâmpago com o Gonzalo.

“Neli, vou levar a Alê para a praia nas férias, pode ser? Será um presente para minha afilhada e para você, irmã! Aproveita para passear com o maridão!” — Não sei se foi essa a sua fala para convencer a minha mãe, mas imagino que tenha sido algo assim, bem humorado como você.

Você não tinha vergonha de nada nem de ninguém: brincava com todos, fazia palhaçadas e atraía a atenção de quem passasse por perto da gente naqueles dias no Guarujá. Passávamos os dias brincando na areia, pulando ondas, pegando jacarés surfando de barriga e dançando na chuva nos finais daquelas tardes quentes de verão.

Lembro bem da nossa última tarde na praia: a chuva veio de repente, sem que o sol fosse encoberto: ele permaneceu forte e brilhante no alto do céu, enquanto caía água daquela robusta nuvem arroxeada como se fossem lágrimas de quem estava se despedindo das férias e de tão bons momentos vividos. Admiramos essa chuva contemplando a beleza dos elementos da natureza que coexistiam apesar de sua tão óbvia contrariedade.

Após o fim da chuva, sentamos na areia refletindo e falando sobre o arco-íris formado sobre o mar. Você estava emocionada e seus olhos marejados pareciam dizer que aquela era uma das visões mais lindas que você já tivera. O arco-íris surgindo sobre o mar foi tão representativo! Passamos quase uma hora admirando aquela beleza passageira sobre a infinitude do mar.

Voltamos a São Paulo e poucos meses depois você reatou com o argentino Gonzalo, que a convidou para viver com ele em Buenos Aires. E da Argentina foram ao Peru; anos depois saíram de Lima em direção a Lisboa, Coimbra e Sintra onde enfim se desentenderam totalmente e se separaram após quase uma década vivendo juntos.

Desde aquele ano na praia não nos vimos mais, porque mesmo separada você não quis regressar ao Brasil. Permanecemos em contato por cartas à mão e depois e-mails, até que tenhamos chegado às chamadas de vídeo, mensagens rápidas no whatsapp e atualização da vida alheia pelo feed e status de facebook.

Tia querida, com esta carta, gostaria de resgatar um pouco da poesia que vivemos e trazer aquele colorido do arco-íris de volta a nossas vidas. Sua separação há anos a fez acinzentar e quase não mais reconheço a madrinha solar que há pouco descrevi nas linhas acima. Acompanho com tristeza as notícias que repercutem em suas redes sociais, mensagens de quem se apegou a falsas esperanças e que não combinam com a minha tia que amava sem distinção e apreciava a vida sem preconceitos e extremismos.

Espero não a ter julgado erroneamente e que resgate a Emília que ficou lá no Guarujá. Fico na torcida para que meu encanto pueril por sua imagem mais jovem não se desfaça quando quiser me responder ou conversar sobre esta carta.

Com amor,

Alessandra.

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Daniela Zanutto
Ninho de Escritores

Meus textos falam sobre o feminino e as suas implicações de uma maneira muito pessoal.