Concretudes de uma cena de ação

Tales Gubes
Ninho de Escritores
7 min readOct 10, 2020

Sigo com os exercícios semanais na newsletter do Ninho de Escritores. Desta vez, partimos do texto de Wanderley Silva para reescrevê-lo em maior tamanho (até 200 palavras) e incluindo um personagem concreto, com motivações e anseios específicos.

Este foi o texto original:

Caminhos
Chovia, fino e constante. Ao volante, a obrigação, imperativa, o fazia seguir, apesar de tudo. O pensamento, lento como o trânsito, vagava. O trânsito, agonizante como o sentimento, arrastava-se. Era urgente chegar, mas impossível seguir. No cruzamento, a luz vermelha o estancou de vez. Olhou em volta. Notou, bem ao lado, uma vaga. Uma oportunidade? Hesitou, mas estacionou e saiu caminhando. Na esquina, decidiu pela outra direção. Agora, eram seus passos que o faziam seguir. E seguiu. O pensamento ia tornando-se outro e já conseguia olhar além. Percebeu que não mais chovia. E, à frente, havia o caminho.

E a seguir, vejamos os textos que nasceram deste exercício.

Um vislumbre do que houve e lágrimas verteram de seus olhos. Ele não era aquela pessoa. Ele não era um assassino, mas em suas mãos havia sangue. Queria que a chuva continuasse e assim, quem sabe, lavaria de todo o sangue e deixaria escorrer pela sarjeta junto com aquela história toda. Mas não se foge de algo tão soturno como a morte. Era como uma sombra, tão densa, que engolia toda a felicidade que ele poderia sentir. Agora ele precisava contar à ela. Seu irmão está morto, era eu ou ele. Cliché, mas era a verdade.

No fim do dia, seus companheiros lhe diriam “Você só estava fazendo seu trabalho” e ele até acreditava naquilo, mas o que aconteceria com seu casamento? E de novo ele viu se descortinar em sua frente a morte.

Ele havia gritado sua ordem. Abaixe a arma e coloque as mãos na cabeça. Simples e fácil, mas o rapaz tinha que apontar a arma. Um impasse. Talvez não fosse, pois ele sabia que o rapaz não queria levar aquilo adiante. Então, por que atirei? No fim do dia o que o mundo saberia era que um policial matou um assaltante. Para o policial a manchete seria diferente e teria apenas uma leitora, sua esposa. Querida, eu matei seu irmão.

(Rene Spoladore)

Caminhos

Não. De novo não.

O homem apertou o volante e estirou o corpo. Como se isso fosse uma maldita poltrona. Ele rangeu leve o maxilar antes de suspirar. Não. Não tinha jeito. De todas as pessoas, ele sabia disso. As buzinas e xingamentos d’outros motoristas o adoentavam. Afinal, que merda de direito eles têm? Não podem calar a boca?

Um riso nasalado escapou dos lábios finos do homem de gravata. O trânsito enguiçado não era surpresa. Mas precisava ir. Precisava.

Pressionou mais o volante. Os nós dos dedos peludos tremiam. O Vidro: uma paisagem lúgubre. Dora. É para Dora.

Respirou fundo.

Afrouxou, devagar, o colarinho.

Abriu a porta do carro.

Fechou.

Não ficaria nem mais um segundo com esses filhos da puta.

Saiu do trânsito sob buzinas e berros de comiseração. Um jovem e sua mulher ameaçaram atropelá-lo. Mas sua filha era mais importante que a chuva escorrendo pelos cabelos e barba; chuva essa que depregara a amargura de teu semblante.

Engraçado como as coisas passam: vivemos, lembramos e se arrependemos. O carro será roubado. A polícia virá atrás. E a filha ficaria em apuros. Atos impensados…

Mas sabia.

Não se brinca com estupro. Nem com escola. Nem Dora.

(Gabriel Cosendey)

Após sair da prisão Helena percorria a estrada, com destino a fazenda onde morava.

Buscando incansavelmente notícias dos seus filhos que a muito não tinha.

Era época de chuva no sertão semiárido nordestino, e para sua pouco ou nem uma sorte nesse dia chovia, ela corria contra o tempo, queria poder diminuir o espaço, estre a casa dos seus pais e a fazenda. Chegar logo e encontrar com sua prole. A chuva fina embasava os vidros do carro do seu irmão que ela pegara emprestado, quase não a deixando ver a estrada com suas curvas fechadas e montanhosas, e pouco trafego àquela hora da manhã.

Ela não podia parar, tinha que chegar ao seu destino o mais rápido possível, já se passara muito tempo sem ela os ver. Seus pensamentos se misturavam, ora alegres ora tristes, desconectos, embaraçados, ela não conseguia alinhá-los, seguia seu destino esperançosa. Seus filhos era o que tinha de mais precioso.

Estacionou o veículo em frente a porta de sua antiga casa, desceu deste, gritando.

— Marcos, — Marcos…

Pouco tempo este apareceu, estava acompanhado de outra mulher.

Só então Helena percebeu que já não era a única dona daquela cassa e que seus filhos já tinham uma madrasta.

(Maria do socorro Vieira Freire)

Chovia, fino e constante. Alberto estava indo se encontrar com Regina, sua esposa. Depois de vinte anos de casamento, estava finalmente disposto a colocar um fim no relacionamento desgastado. Hesitava, porém, pensando nos filhos, na família, no que iriam dizer, na reputação, nos amigos do trabalho. Se não tivesse se apaixonado por Júlio, talvez não tomasse nunca a decisão. Mas não queria enganar a mulher com quem viveu tanto tempo. Ao volante, a obrigação, imperativa, o fazia seguir, apesar de tudo. O pensamento, lento como o trânsito, vagava. Lembrou das curvas de um sorriso, mordendo o lábio. O trânsito, agonizante como o sentimento, arrastava-se. Era urgente chegar, mas impossível seguir. No cruzamento, a luz vermelha o estancou de vez. Olhou em volta. Suava frio. Notou, bem ao lado, uma vaga. Estacionou e saiu caminhando. Na esquina, decidiu pela outra direção. A dúvida ainda o desnorteava. Agora, eram seus passos trêmulos que o faziam seguir. E seguiu. O pensamento ia tornando-se outro e já conseguia olhar além. Vislumbrou possibilidades. Percebeu que não mais chovia. E, à frente, havia o caminho.

(Suzane Silveira)

TOC

E essa chuva que não para. Será a primeira vez que irei encontrar esse Terapeuta. É necessário. O médico falou que eu tenho mania de perseguição e esse, como é o nome mesmo, ah, lembrei, Transtorno Obsessivo Compulsivo…TOC. Sei lá Será? Ele mandou fazer terapia. Terapia com essa chuva!!!. Vou é ficar olhando pela janela. Não tenho nada para falar….

Preciso estacionar o carro, mas não nessa vaga. Tem um sujeito ali muito mal encarado. Sei lá, parece meio esquizofrênico. Eu falo ou não para o terapeuta que tomo tarja preta da pesada? Acho que sim.

Vou parar aqui..bem longe do esquizofrênico…

Parou de chover, ainda bem.

Não vejo problema em ficar tocando nos postes. Eu tenho que fazer isso. Meu amigo Willian acha graça e, às vezes, fica impaciente com esse meu jeito. Ele diz que é mania, mas o médico falou que é TOC…sei lá.

Ih, esse poste está molhado, esse também…..putz, minha mão está encharcada….. Ai que sensação de sujeira! Cadê a minha caixa de lenços umedecido, meu Deus? Onde é que eu coloquei? Onde eu coloquei os meus LENÇOS UMEDECIDOS??

“Posso ajudar, senhor”?

Quem é você?

“Sou o guarda daqui. Eu observei o senhor. É que o senhor parece meio desesperado, se apoiando nos postes, além do que o senhor deixou o carro ocupando duas vagas e saiu andando pela rua. Pensei que estivesse passando mal. Vi que não está. Está atrasado para o compromisso, né?

Heim…É..

“Então precisa estacionar direito, senhor. Não pode ocupar duas vagas….”

.Cadê a Caixa de Lenços…..eu sempre coloco aqui nesta mala…..

“Se o senhor quiser, pode lavar as mãos em nossos sanitários….”

Você não está entendendo. EU PRECISO DOS MEUS LENÇOS!!

“Calma, senhor, não precisa gritar. Vamos entrar no seu veículo e estacionar corretamente.

Está bem. Preciso voltar. Vou buscar a caixa de lenços.

“Mas, e o seu compromisso, senhor?

Que compromisso?

(Marilda Alvarez)

Chovia, fino e constante. Ao volante, a obrigação, imperativo sufocante, o fazia seguir, apesar de tudo. A aliança na mão esquerda apertava o dedo, a alma, a vida. O pensamento, libertando-se do trânsito, fugia: festa, luzes, beijo, glúteos, cigarro, beijos, medo, luzes, casa. Respira. Festa, não sei bem, telefone, cafeteria, angústia, minhas mãos suam frio, moramos juntos, volta, namoro, festa, nunca quis ir, maldito desejo…

Freada brusca. O trânsito, agonizante como o sentimento, se detém outra vez. Era urgente chegar. Ele o estava esperando lá. As barbas se roçariam outra vez. Mas era impossível seguir.

No cruzamento, a luz vermelha se fez sinal transcendente e o estancou de vez. Olhou. Pensou. Hesitou, mas estacionou na vaga ao lado e saiu caminhando.

Na esquina, decidiu pela outra direção. Agora eram seus passos que o faziam seguir.

E seguiu. Já conseguia olhar além do discurso tão repetido: “Você é o que deseja e não existe chance de mudar. Se aceite. Você nasceu assim. Orgulhe-se.”

Pela primeira vez, se permitiu questionar. A angústia do desencaixe interno o levou a ver um raio de luz: não é assim que eu sou.

Percebeu que não mais chovia e, à frente, já havia um caminho.

(André Nascimento)

Todo mundo sabe que não se deve procurar um agiota. São como parasitas, sugando parcialmente sua vitalidade para que você siga enganado, acreditando que ainda está no controle de alguma coisa.

O problema é quando Ane — sua filha linda que costumava pular na sua cama às 7h da manhã para conseguir panquecas com mel — não está mais reagindo à terapia de hemodiálise. E quando o médico te olha ensopado de pena e diz que vai fazer de tudo para chegarmos rápido ao topo da lista de transplantes. E então quando sua filha finalmente parece estar a um passo de ser contemplada pela vida, outra criança misteriosamente lhe toma a primeira posição. E ainda, quando você descobre que essa criança é filha de um dos patrocinadores do hospital, enquanto você é apenas um professor de matemática do ensino médio.

De repente aquele contato obscuro no fundo da gaveta, se torna minha última chance de ver minha filha completar seis anos. E eu aperto a mão daquele sujeito, ciente de que estava hipotecando minha autonomia.

Agora, a caminho de mais um envolvimento criminoso a fim de contribuir com o pagamento de minha dívida, uma voz determinada sussurra em minha mente:

Saia. Pegue Ane. Fuja.

(LeahBHarper)

Um muito obrigado a todos vocês que contribuíram com este exercício!

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Tales Gubes
Ninho de Escritores

Um olhar não-violento para uma vida mais livre, honesta e conectada. Criador do Ninho de Escritores, da Oficina de Carinho e do Jogo pra Vida.