Conto — Quintal de trás
Estava eu dormindo, num dia pacato
A me balançar na rede
da pequena varanda de casa
Quando, de repente,
Senti uma
cutucada
Acordei no susto,
Peguei minha bengala
E Levantei com muita sede
Mas havia acabado toda a água
O barril estava vazio
Apesar da chuva torrente
que caía há vários dias
A vizinhança era Hostil
Resolvi, então,
Caminhar até o quintal
Que não era muito profundo
Era uma área larga,
cercada de um alto muro
Não era tão simples andar por lá,
A vista não era
conVIDAtiva.
O quintal não tinha mesmo o brilho do jardim.
Na frente da casa, enquanto eu cultivava alecrins,
margaridas, Girassóis, canteiros de violetas
E um pé de boldo,
Mantinha pendurado no toldo da varanda
um frasco de plástico invertido, rodeado por uma ciranda de falsas flores,
Contendo uma água bem doce
para que Eu pudesse talvez receber a visita de alguns
Beija flores.
Os anos de grama crescida lá atrás não me incomodavam,
Pelo contrário,
Preenchiam de Verde Companhia a vista
dos buracos que o quintal continha.
Se fosse desejo
Lá caberia até uma piscina
Ou
Um banco de descanso
Que eu rodearia de trilhas com arranjos de ar sereno.
Mas,
No fundo do meu terreno
Havia somente
Um Poço.
Surgiu lá quando eu ainda era moço.
E ocupou logo todo o espaço
O seu bocal de tijolos vermelhos
Sempre subia
Conforme eu Crescia
O balde de prata
Matava nossa sede de água
E sempre Brilhava, mesmo à noite
Brincamos ao seu redor ao longo de muitos e muitos anos
Me jogar dali nunca esteve nos planos
Embora ainda ecoe a voz de respeito da minha mãe a repetir:
“Meu Filho,
Cuidado,
Não vá cair no buraco errado”
O poço foi, pois, Abandonado
Depois da história de que surgira ao seu redor
Um fosso oculto
que contaminou toda região.
A solução
foi começar a beber água de Fora
Mantive o poço, o velho balde, suas longas correntes e histórias.
Em Honra aos meus restos de memória.
Naquele dia
Eu tinha Tamanha sede
Que Resolvi tentar a sorte e ver se extraía
Alguma água
mesmo que fosse
Contaminada.
Afinal,
meu Poço não era um fosso.
Nem uma calha
Era um túnel vertical de bordas Floridas
Em cujo balde um dia saiu água limpa.
Caminhei pelo quintal,
afastando com a bengala as folhas Altas
a fim de encontrar sua entrada.
Encostei a bengala no parapeito que agora me parecia bem mais estreito do que eu me lembrava.
Meu corpo por ali já não passava.
No instante em que eu o destampava
Senti um bafo rasante de esgoto misturado à um cheiro ralo de flores no lixo.
Era o aroma de um Perfume francês esquisito.
Olhei para baixo, nem sei por quê
Não conseguia ver o fundo
Toquei com as duas mãos a beirada de tijolos,
fechei forte os olhos e veio a imagem de tudo que estava ali.
Tudo que desmereci
Tudo desde o início
O túnel parecia não ter fim
A profundidade de mim era de um precipício.
Paredes de cascalhos, recobertas de um tapete musgo do mais puro veludo de lodo.
Desde o alto,
Porejavam das entranhas dos tijolos
Finos fios de água,
que ora saía escura, ora clara.
Sais de prata iluminada, nela diluídos, se misturavam ao verde cru e reluziam.
O choro das paredes junto aos ruídos de anfíbios e mosquitos ecoava um murmúrio fino e turbulento de um fluxo constante.
Descendo mais, vazaria das paredes algum sangue.
Em alguns degraus de tijolos das laterais era possível encontrar
pilhas de pedras.
Quadradas, redondas, de pontas
E cacos
Pedaços de brinquedos que atirávamos quando éramos crianças.
Encontrei também moedas diversas.
Xelins, latão, prata e bronze.
Chaves de cadeados fechados
Dobradiças de armários.
Pontas de cigarros
Chiclets
Mais abaixo,
Na superfície da água espumosa
Manchada de cuspe, vômitos e regurgitos
Flutuam papéis, notas,
folhas de diários.
Calendários atrasados
Também bóia um beija flor morto.
Aprofundando na água, posso ver
Sei que encontraria
Alguns corpos de ratos e porcos mortos
misturados à muitos outros órgãos humanos,
pedaços de vísceras,
Fígados, vesículas
e porções de intestinos soltos.
Se submersos meus ouvidos
Juro que ouço
Sussurros.
As partes de gente rasgada
não eram apenas de outros estranhos
Havia bocados
do meu próprio corpo.
Lascas de pele,
Verrugas, nódulos
seios ruídos.
Um nariz torto.
Encontrei Metade de um hímen rompido
Dentre tantos fragmentos
Um rosto conhecido:
Minha mãe sorrindo
Com a maquiagem morta de pó branco
Bastava
Não queria ir mais fundo
Sabia que se escavasse o túnel,
encontraria
a Indesejada
alojada lá no seu fim
A caliginosa sereia
Sentada a me aguardar na areia
Por enquanto,
eu Não passava pela entrada estreita.
Sei que ela está lá
A esperar
Que algo que me estilhasse,
quem sabe,
eu me depare com a grande Mãe daqueles corpos.
Um dia
eu vou enfrentar a Maldita
que me suga aliquotas de energia todos os dias.
Se por acaso caísse
Agora
Naquela água
Não saberia dizer se afundaria ou flutuava
Talvez
Eu até Respirasse
No mar desse submundo
Seria um peixe do meu túnel escuro.
Na falta de água,
com Muita Sede,
procurei as águas do velho poço.
Cansado de esperar
Despreguei-me do parapeito
Agarrei as correntes com força
E trouxe de uma vez à tona
O balde
Com a Coragem que guia os loucos
As correntes rangiam um grunhido destemido
Fiz bastante força
Sem temer o perigo
O balde subiu ligeiro
Veio balançando Cheio
De uma água turva
Mas sem lodo
E no seu fundo
Preenchido
de Moedas de ouro.
👏👏👏💕