Conto — Quintal de trás

Izabella Cristo
Ninho de Escritores
4 min readSep 10, 2021

Estava eu dormindo, num dia pacato

A me balançar na rede

da pequena varanda de casa

Quando, de repente,

Senti uma

cutucada

Acordei no susto,

Peguei minha bengala

E Levantei com muita sede

Mas havia acabado toda a água

O barril estava vazio

Apesar da chuva torrente

que caía há vários dias

A vizinhança era Hostil

Resolvi, então,

Caminhar até o quintal

Que não era muito profundo

Era uma área larga,

cercada de um alto muro

Não era tão simples andar por lá,

A vista não era

conVIDAtiva.

O quintal não tinha mesmo o brilho do jardim.

Na frente da casa, enquanto eu cultivava alecrins,

margaridas, Girassóis, canteiros de violetas

E um pé de boldo,

Mantinha pendurado no toldo da varanda

um frasco de plástico invertido, rodeado por uma ciranda de falsas flores,

Contendo uma água bem doce

para que Eu pudesse talvez receber a visita de alguns

Beija flores.

Os anos de grama crescida lá atrás não me incomodavam,

Pelo contrário,

Preenchiam de Verde Companhia a vista

dos buracos que o quintal continha.

Se fosse desejo

Lá caberia até uma piscina

Ou

Um banco de descanso

Que eu rodearia de trilhas com arranjos de ar sereno.

Mas,

No fundo do meu terreno

Havia somente

Um Poço.

Surgiu lá quando eu ainda era moço.

E ocupou logo todo o espaço

O seu bocal de tijolos vermelhos

Sempre subia

Conforme eu Crescia

O balde de prata

Matava nossa sede de água

E sempre Brilhava, mesmo à noite

Brincamos ao seu redor ao longo de muitos e muitos anos

Me jogar dali nunca esteve nos planos

Embora ainda ecoe a voz de respeito da minha mãe a repetir:

“Meu Filho,

Cuidado,

Não vá cair no buraco errado”

O poço foi, pois, Abandonado

Depois da história de que surgira ao seu redor

Um fosso oculto

que contaminou toda região.

A solução

foi começar a beber água de Fora

Mantive o poço, o velho balde, suas longas correntes e histórias.

Em Honra aos meus restos de memória.

Naquele dia

Eu tinha Tamanha sede

Que Resolvi tentar a sorte e ver se extraía

Alguma água

mesmo que fosse

Contaminada.

Afinal,

meu Poço não era um fosso.

Nem uma calha

Era um túnel vertical de bordas Floridas

Em cujo balde um dia saiu água limpa.

Caminhei pelo quintal,

afastando com a bengala as folhas Altas

a fim de encontrar sua entrada.

Encostei a bengala no parapeito que agora me parecia bem mais estreito do que eu me lembrava.

Meu corpo por ali já não passava.

No instante em que eu o destampava

Senti um bafo rasante de esgoto misturado à um cheiro ralo de flores no lixo.

Era o aroma de um Perfume francês esquisito.

Olhei para baixo, nem sei por quê

Não conseguia ver o fundo

Toquei com as duas mãos a beirada de tijolos,

fechei forte os olhos e veio a imagem de tudo que estava ali.

Tudo que desmereci

Tudo desde o início

O túnel parecia não ter fim

A profundidade de mim era de um precipício.

Paredes de cascalhos, recobertas de um tapete musgo do mais puro veludo de lodo.

Desde o alto,

Porejavam das entranhas dos tijolos

Finos fios de água,

que ora saía escura, ora clara.

Sais de prata iluminada, nela diluídos, se misturavam ao verde cru e reluziam.

O choro das paredes junto aos ruídos de anfíbios e mosquitos ecoava um murmúrio fino e turbulento de um fluxo constante.

Descendo mais, vazaria das paredes algum sangue.

Em alguns degraus de tijolos das laterais era possível encontrar

pilhas de pedras.

Quadradas, redondas, de pontas

E cacos

Pedaços de brinquedos que atirávamos quando éramos crianças.

Encontrei também moedas diversas.

Xelins, latão, prata e bronze.

Chaves de cadeados fechados

Dobradiças de armários.

Pontas de cigarros

Chiclets

Mais abaixo,

Na superfície da água espumosa

Manchada de cuspe, vômitos e regurgitos

Flutuam papéis, notas,

folhas de diários.

Calendários atrasados

Também bóia um beija flor morto.

Aprofundando na água, posso ver

Sei que encontraria

Alguns corpos de ratos e porcos mortos

misturados à muitos outros órgãos humanos,

pedaços de vísceras,

Fígados, vesículas

e porções de intestinos soltos.

Se submersos meus ouvidos

Juro que ouço

Sussurros.

As partes de gente rasgada

não eram apenas de outros estranhos

Havia bocados

do meu próprio corpo.

Lascas de pele,

Verrugas, nódulos

seios ruídos.

Um nariz torto.

Encontrei Metade de um hímen rompido

Dentre tantos fragmentos

Um rosto conhecido:

Minha mãe sorrindo

Com a maquiagem morta de pó branco

Bastava

Não queria ir mais fundo

Sabia que se escavasse o túnel,

encontraria

a Indesejada

alojada lá no seu fim

A caliginosa sereia

Sentada a me aguardar na areia

Por enquanto,

eu Não passava pela entrada estreita.

Sei que ela está lá

A esperar

Que algo que me estilhasse,

quem sabe,

eu me depare com a grande Mãe daqueles corpos.

Um dia

eu vou enfrentar a Maldita

que me suga aliquotas de energia todos os dias.

Se por acaso caísse

Agora

Naquela água

Não saberia dizer se afundaria ou flutuava

Talvez

Eu até Respirasse

No mar desse submundo

Seria um peixe do meu túnel escuro.

Na falta de água,

com Muita Sede,

procurei as águas do velho poço.

Cansado de esperar

Despreguei-me do parapeito

Agarrei as correntes com força

E trouxe de uma vez à tona

O balde

Com a Coragem que guia os loucos

As correntes rangiam um grunhido destemido

Fiz bastante força

Sem temer o perigo

O balde subiu ligeiro

Veio balançando Cheio

De uma água turva

Mas sem lodo

E no seu fundo

Preenchido

de Moedas de ouro.

👏👏👏💕

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Izabella Cristo
Ninho de Escritores

Me Escondo Aqui. Escritora✒️, Cirurgiã🔪Mãe👻,em relacionamento sério com as palavras. Livros: Vida Nada Moderna, Retratos da quarentena. www.izabellacristo.com