[Conto] Rei Maldito

Ana Carolina
Ninho de Escritores
4 min readMay 12, 2021

Chovia. As estradas se transformavam em verdadeiros lamaçais. Apesar disso, os grupos de maltrapilhos chegavam. Idosos e doentes em sua maioria, crianças barrigudas e descalças, mulheres cansadas, homens feridos. Vinham em grupos de 7 a 20, reunidos pelo caminho, conscientes que, em grupo, poderiam vencer todas as incertezas.

Para o homem que observava mais um grupo de ambulantes chegando, havia apenas a certeza da prisão. Não queria machucá-los e, para isso, tinha que se submeter a um ato horrível. Pensar nisso fazia sua mão direita formigar. Com os braços fortes cruzados sobre o peito nu, Querido, como era chamado, olhava os grupos e ignorava os gritos irritados dos soldados ou a forma maldosa com que eles conduziam aquelas pessoas.

Fechou o punho com força, como se isso pudesse parar o processo. Afastou-se da proteção da torre e deixou que a chuva o encharcasse. Abriu a mão e deixou que as pesadas gotas batessem na palma e amenizassem o processo. A queimadura desenhada cuidadosamente indicava a sua maldição. Antes de ele ser quem era agora, ele foi um dos ladinos mais bem sucedidos da guilda da capital. Mesmo que sua habilidade com adagas fosse lendária entre seus companheiros, tinha dúvidas se ainda conseguiria fazer o mesmo. A mão tremia levemente, a marca faiscava, refém da maldição que o condenava.

Voltou para a torre e esperou seus olhos se acostumarem ao ambiente confortável, notando o homem que dormia placidadamente na imensa cama. O Rei. Não conseguia odiá-lo, embora tentasse com todas as suas forças, não conseguia. Aquele ser, tão bonito como desprezível, o tomou como companheiro, tanto fisicamente como emocionalmente, e não importava o que Querido fizesse ou falasse. Era parte da maldição, ele pensava, só isso justificava a dor que lhe roubava o fôlego ao pensar que nunca mais queria ver aquela criatura.

A mesma dor que o acometia agora e que o fez erguer a mão formigante ao peito. O Rei maldito. O maldito Rei. A mão trêmula afastou-se e ele notou o brilho mágico que escapava da queimadura. Quando voltou seus olhos à cama, o Rei acordava, espreguiçando-se de forma lenta e sensual. O cabelo branco comprido passava os ombros e lhe dava um ar sobrenatural. Os olhos eram duas pedras negras, possuidoras de um brilho que penetrava na alma. Os lábios eram finos, deliciosos e maldosos.

Usando a outra mão, Querido apertou o pulso do braço direito, para conter o tremor. Notou o Rei arrastando-se pela cama, olhando-o diretamente. Fez um esforço e desviou seus olhos para a porta dupla da torre, uma ansiedade primitiva de fugir antes que tudo acontecesse.

— Venha, meu querido — Rei chamou. Sua voz rouca e sedutora funcionava como uma espécie de comando ao homem que ainda fitava a porta, agora com o coração disparado. Ele queria resistir. Ele podia resistir. A porta significava ficar longe daquele encanto e escapar daquele tormento.

Lembrava de seu sorriso refletido na faceta da jóia roubada da tumba. Do brilho de ganância em seus olhos. Era uma pedra valiosa, mais uma como muitas que roubara antes. Ao primeiro toque, a pedra vermelha estava quente, ao segurá-la com força e removê-la de sua posição, o ar ficou suspenso e o tempo pareceu congelar. Odiava lembrar disso. Fechou os olhos.

Quando os abriu, o Rei estava na sua frente, tão alto e poderoso que Querido gemeu, mergulhando naquele torpor que lhe toldava as ações. O sorriso belo e enigmático da figura diabólica fez o sangue dele parecer lava correndo pelas veias. Sua mão soltou o pulso, libertando a mão maldita para tocar o rosto bonito. Suave e delicioso como a casca de um pêssego maduro.

— Me deixe ir — Querido pediu, fitando os lábios do Rei, ansioso para prová-los. Sentiu a mão em suas costas e suprimiu um gemido aflito. O Rei molhou os lábios com a ponta da língua rosada.

— Nunca — respondeu, virando a cabeça e beijando a palma marcada.

A batida forte na porta da torre foi uma corda lançada para o autocontrole do Guardião. Com um grande esforço, ele deu um passo para trás e não soube se empurrou ou não o Rei. A vista estava turva e sua mão ardeu, tomada pelas chamas. Lembrou-se novamente da gema vermelha, do ar suspenso e do tempo congelado. A pedra se partiu e os fragmentos estilhaçados libertaram a criatura. Quem? Ele? O Rei?

Teve a impressão que correu em direção à porta da torre antes de desabar no chão, tomado pelo processo. Sua luta pela consciência estava perdida. Tudo escureceu.

Outra forte batida e a porta foi aberta. O Cardeal entrou com dois guardas. Fizeram uma reverência ao homem sentado na cama, ensopado. Sentiam simpatia pelo monarca, parecia sempre melancólico e sozinho, embora isso não o tornasse mais amigável ou o enfraquecesse.

— Mais vieram — o Cardeal informou.

— Eu sei, eu os vi chegando.

Os guardas olharam em volta e não encontraram mais ninguém no aposento. Enviaram um sinal de cabeça ao Cardeal e foram esperar na porta, fechando-a com cuidado. O Cardeal ficou na frente do rei e removeu a túnica que cobria o corpo.

— Majestade, est-.

Antes mesmo de conseguir terminar a sentença, o Cardeal viu-se deitado na cama com o rei em cima dele. Foi apenas um segundo de surpresa antes da perfuração no braço lançá-lo ao um estado de êxtase que o fez perder-se em si mesmo.

Após se alimentar, o rei largou o braço e lambeu os resquícios de sangue dos lábios, deliciado. Você é um monstro. O cardeal vivia, respirando rapidamente, sujo com seu próprio orgasmo. Ele não é delicioso como você. Colocou-se de pé e apanhou a roupa que tirou na noite anterior, enquanto Querido e o Rei se desfundiam para tornarem a se fundir na cama. Você ainda vai matá-lo. Empurrou o longo cabelo preto para trás com a mão sadia. Fique quieto, meu querido. Caminhou para a porta e os soldados abriram, sempre espantados com a vivacidade de sua majestade depois da reza com o cardeal.

— Mande chamar as pessoas — ordenou, sentando-se no trono e dando início ao tratamento curativo com a mão marcada que era conhecido até fora de seu reino.

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Ana Carolina
Ninho de Escritores

MindFlayer. Ficwriter se esforçando para sair dessa vida. Gosto de escrever.