Descrevendo tipos aleatórios num festival

Tiago da Silva
Ninho de Escritores
5 min readNov 11, 2018
Foto meramente ilustrativa: http://www.chemicalmusic.com.br/veja-como-curtir-ao-maximo-um-festival-de-musica-eletronica/

Estou a trabalho fazendo fotos num evento que terá uma porrada de shows. Serão mais de uma centena de apresentações ao longo de 7 dias de festa. Gêneros musicais bem ecléticos e variados tipos de pessoas.

Estou sentado dentro de um estande vendo a movimentação de pessoas entrando no complexo destinado aos shows. Tem uma janela de vidro no estande e eu posso acompanhar as pessoas durante um espaço de 16 segundos, desde o momento em que entram no meu quadro visual até o momento em que desaparecem no final da janela-moldura.

Eu tenho uns 15 minutos antes do próximo show começar em um dos palcos, já baixei as fotos do show anterior. Vou tentar tomar nota e descrever tipos curiosos que passarem por mim, como numa pintura impressionista que tenta captar um momento efêmero, sua essência, e registrá-la, recortando a realidade.

Tipo 1

É um casal, na verdade. Ele de chapéu e bigode, ela de vestido florido, devem ter entre 60 e 70 anos e devem vir a todas as edições, mais por causa das bandinhas típicas alemãs e bandas de baile. Andam com dificuldade, mas sei pela experiência que deverão dançar a noite toda após alguns chopps. Olham tudo com curiosidade, buscando as novidades na nova edição. Como um sertanejo que há muito não “vai à cidade”.

Tipo 2

Ele é o que chamo de trusão: um metaleiro “de verdade” (true). Tem já os seus 40 anos mas ainda exibe a camiseta de uma banda que deve ser Black Sabbath ou Iron Maiden As entradas na cabeça e o andar lento denunciam que não tem mais o vigor com que ia a shows de metal há 20 anos, e se entrar num mosh pit (movimentos circulares feitos em grupo durante um show, em uma grande fila circular, dando murros e chutes, na parte mais pesada de algumas músicas) deverá levar a pior, porque aparenta cansaço pelo simples esforço de caminhar. Tem tatuagens e talvez faça parte de um motoclube, mas está só. Talvez encontre os amigos em um dos próximos shows de grupos locais, tocando covers de bandas de heavy metal e hard rock.

Tipo 3

Ela é jovem e o corpo começa se parecer com o de uma mulher. É seguramente a menina mais popular da sua turma, quiçá da escola de seu bairro e a festa anual em que se encontra é a ocasião que encontrou para colocar seu magnetismo à prova. Precisa experimentar a extensão de seu poder, descobrir se pode encantar os meninos (e homens?) em uma escala maior do que já faz. Poderia seduzir até a dupla sertaneja que se apresentará no palco principal? Colocou suas melhores roupas e acessórios, deve ter pego algo emprestado com alguma prima mais velha. A maquiagem é excessiva. Tenta parecer casual, mas está muito interessada em descobrir que tipo de efeito sua presença causa nas pessoas à sua volta. Não desgruda das amigas porque sabe que pode sofrer assédio além do que pode contornar.

Tipo 4

São 3 moleques de seus 12 ou 13 anos. Surpreendentemente parecidos, quase iguais. Devem ser colegas de escola, possivelmente amigos de uma vida toda. São gordinhos, usam bonés e camisetas longas demais. Olham tudo com atenção porque talvez seja uma das primeiras vezes em que podem sair de casa sozinhos, sem pais ou irmãos mais velhos para vigiá-los. Tem muita gente aqui, talvez 50 mil pessoas e isso lhes dá certa invisibilidade, uma liberdade derivada da pequena probabilidade de serem notados fazendo merda. Dá pra sentir que alimentam a esperança de beijar alguém na boca antes de a noite acabar. Eu me lembro da primeira vez que vim a esse festival, eu tinha 14. Também vim com meus amigos gordinhos.

Tipo 5

Ela está tentando fazer a selfie perfeita. Deve ter uns 25 anos e está muito produzida. Possivelmente terminou uma relação há pouco ou, por algum outro motivo qualquer, precisa desesperadamente mostrar ao mundo que está bem, que está feliz. Dá sorrisos forçados enquanto tenta enquadrar a si e a decoração do evento numa foto só. Um rapaz se ofereceu para tirar a foto para ela, mas recusou. Minha leitura labial não é grande coisa, mas li algo como “Eu quero a selfie mesmo”. Tenta mais um pouco e por fim desiste, a luz não devia estar favorecendo-a naquele ponto específico.

Tipo 6

É um casalzinho jovem. Não têm muita intimidade um com o outro, mas ele tenta compensar o desconforto falando muito, provavelmente de si mesmo, e gesticula demais também. Ela se limita a assentir com a cabeça e esboça sorrisos aqui e ali. Pelo seu olhar, diria que ela se pergunta “será que agora a gente já pode comer?”. Ele parece satisfeito com o efeito de seus feitos e proezas sobre a moça. Andam sem rumo, como que temendo de certa forma o momento em que sentarão frente a frente em uma mesa e terão de se olhar nos olhos. Aquela sensação de nudez deve intimidá-los, pesar da fome dela. Diria que se conheceram no meio da semana, pelo Tinder. Ele a conduz a passos lentos por caminhos que ele mesmo vai traçando a cada passo, desviando da multidão de pessoas.

Tipo 7

O cara está com chapéu típico alemão (parece mais tirolês na verdade, verde de feltro com a peninha aquela) e um copo de chopp na mão, indo na direção das bandinhas típicas. Ele deve ter os seus 35 anos, é extremamente alto, gordo e forte. Não consigo imaginá-lo dançando e não quero imaginá-lo caindo de bêbado: seguramente levaria umas 3 pessoas consigo em sua queda. Acho que é o tipo de sujeito que precisa de dezenas de litros de chopp para ser derrubado. Deve passar os próximos sete dias seguindo as bandinhas que vão se movimentando pelo complexo. Agora mesmo elas estão atrás do estande onde estou tentando trabalhar (ou melhor, escrever) e o curioso é que parece que estão sempre a tocar a mesma música.

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Tiago da Silva
Ninho de Escritores

Às vezes me surpreendo com o que escrevo, porque não sabia que pensava assim.