Do calor ao frio extremo
Estaciona ali, Karina! Tem um carro saindo!
Mal havia puxado o freio de mão e o cinto dele já estava solto, o pino que travava a porta levantado e sua mão direita já estava sobre o puxador. Certamente antes de abrir a porta, ele sentiu um arrepio na espinha; meu olhar atravessado para ele era mais gélido que o granizo que despencava do céu vespertino-acastanhado naquela sexta-feira andreense. Não precisei dizer nada; ele entendeu prontamente que eu também iria descer.
Fazia mais de 35°C em São Bernardo na quarta-feira, temperatura totalmente atípica, que nem mesmo os dias mais tórridos do último verão haviam atingido. Muitos ao meu redor suavam e reclamavam; baixavam suas máscaras para a altura da boca, deixando livres o respirar de seus narizes; outros mais ousados (ou acalorados) desciam os acessórios para o queixo (quando não as mantinham penduradas numa das orelhas ou nas mãos mesmo) a fim de evitar que as gotículas de suor se acumulassem sobre seus buços-bigodes. Eu suava, mas feliz. Em terra de garoa permanente e neblina constante, um veranico era muito bem-vindo. O pôr do sol alaranjado num horizonte quase magenta estava encantador nesse dia. Apesar de eu saber que se devia à extrema seca e aos gases poluentes, procurei contemplar a beleza que se exibia na desgraça.
A caminho de casa, dirigia meu carro pensando que deveria lavá-lo no final de semana; a poeira que o recobria já fazia do meu Gol branco, marrom. Sábado eu lavo, antes de sair com o Flávio. Aliás, havia uma mensagem de áudio ainda não-ouvida que ele tinha me enviado durante o dia.
Flávio me enviou uma mensagem dizendo que gostaria da minha companhia para ir ao CEASA de Santo André na sexta-feira para comprar umas flores. A frieza aquariana do meu signo solar imediatamente lembrou-me de que não deveria haver nada de romântico nesse passeio, mas que eu poderia aproveitar a oprtunidade de nos encontrarmos um dia antes do combinado; porém uma fagulha de esperança acendeu a tocha leonina de meu ascendente e me fez criar um cenário de expectativas em que eu já me via nua numa cama forrada de pétalas de rosas, como naquele cartaz do filme “Beleza Americana”.
O calor desmensurado teve fim na madrugada de quinta para sexta-feira: uma tempestade se formou por volta das 3 da madrugada e a véspera do final de semana iniciou macambuza, fria e cinzenta. Um prenúncio positivo talvez? Afinal, não é isso que se diz sobre quando algo inusitado acontece? De tão supreendente, até choveu?
A chuva não ofereceu muitas tréguas ao longo do dia, diminuia um pouco, depois tornava a avolumar-se. Quando deixei a UBS em direção ao prédio de Flávio para buscá-lo, estava caindo uma quase-garoa e nem precisei abrir meu velho guarda-chuvas — se precisasse dele no CEASA, não estaria encharcado.
Queria me olhar no espelho retrovisor para passar um batom, ao menos. Na ânsia de encontrá-lo, saí tão às pressas que nem passei no banheiro feminino para me arrumar um pouco. Abri o porta-luvas buscando o necessaire e encontrei a flanelinha que meu pai havia deixado lá para mim — Karina, como o desembaçador desse carro não está bom, leve sempre um paninho para poder limpar os vidros. — Sábio e sempre cuidadoso, meu pai. Aproveitei para seguir seu conselho, desembacei o espelho e passei meu batom coral.
Quase não te enxerguei dentro desse carro embaçado, Karina!
Se não fosse minha iniciativa, acho que não teria rolado nem o minguado selinho que me deu, interrompendo meu ímpeto por um beijo mais audacioso ao me lembrar que tínhamos que chegar ao CEASA em no máximo meia-hora, senão perderíamos a feira de flores e ele não conseguiria comprar o que precisava para a surpresa que estava preparando. Se não fosse pela palavra “surpresa”, eu teria desistido naquele momento de seguir adiante.
Depois de muita chuva, granizo e tensão ao dirigir um carro embaçado, chegamos faltando 20 minutos para o encerramento da feira.
Se você vai descer também, não demora, senão a banca que quero ir vai fechar!
Minha intenção era a de caminharmos bem juntinhos sob meu pequeno guarda-chuva, protegendo-nos da tempestade, até a tal banca onde eu o ajudaria a escolher as flores para a surpresa; entretanto, meu velho companheiro de aguaceiros resolveu envergar as varetas e me deixar completamente molhada e desorientada, vendo Flávio caminhar rapidamente para longe em busca de comprar suas preciosas flores a tempo e deixando-me para trás.
Cheguei à banca onde ele estava já pagando por um vaso de girassóis. Não me pareceu o suficiente para uma surpresa romântica, mas enfim, ele não era um homem-padrão mesmo. Uma vez na banca, lembrei de comprar um saco de terra e um pouco de humus para adubar o jardim dos meus pais. Voltamos para o carro ainda sob chuva, sem proteção nenhuma sobre nossas cabeças, ele dando passos largos à minha frente, protegendo seu precioso vaso enquanto eu carregava 5 quilos de terra vegetal e 2 de humus tentando não pisar nas poças e encharcar ainda mais minhas sapatilhas.
Fechei o porta-malas e sentei-me ao volante, prestes a explodir de raiva, quando ele me perguntou se eu gostava de girassóis. — Sim, claro! São lindas flores, significativas, solares, acho que se parecem muito comigo e tem tudo a ver com celebrações, são lindos presentes e…
Não eram para mim. Era aniversário da mãe dele, 75 anos. Ontem mesmo, sexta-feira. Por isso a pressa de comprar o vaso; não poderia ser em outro dia. Os irmãos escondidos no hall do apartamento já o estavam aguardando chegar com as flores prediletas da mãe. Sim, como em outros dias, aconteceu de novo: engoli seco o silêncio que se fez no carro até que eu o deixasse em frente ao seu prédio e assim que me vi sozinha, enxuguei toda frustração que escorria pelo meu rosto na flanelinha do meu pai.