Dona Iarinha e o ouvido desafinado

Ana Paula Vilela
Ninho de Escritores
2 min readNov 16, 2020
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A visão era ruim. Os vizinhos achavam que era charme, mas as galochas eram amarelas por um motivo bem claro: precisavam ser facilmente reconhecidas por olhos opacos. O brilho da limpeza diária, razão de tanto burburinho na pequena Campinápolis, também carecia de um motivo charmoso. Era só, na verdade, uma forma de garantir destaque em meio a terra marrom e os tantos tons de verde da horta do terreiro.

O que os olhos custavam a ver a memória tinha gravado. Sorte de Dona Iara, ou Dona Iarinha para os íntimos. Se bem que, convenhamos, ali todo mundo era íntimo, mesmo quem não se achasse.

Dona Iarinha tinha perdido muita coisa na vida, mas uma não lhe faltava: bons ouvidos. Os que tinham muita língua invejavam, chamavam ela de fofoqueira. Agora vê se pode uma coisa dessa, achavam pecado uma pessoa gostar de ouvir.

Amanhecia com o som dos pássaros. Mas não era qualquer um não, era o bando de gaturamo bicudo que ela tanto gostava. Aquele canto rouco, meio assoviado, de quem entendeu que na vida o perfeito é cantar imperfeito mesmo. Gostava também do barulho do rio, que ficava ainda mais alto na hora de dormir. Aliás, nem sabia o que era mesmo dormir sem barulho de rio. Fazia o que, uns cinquenta anos que não tirava o pé de lá?

Pois bem.

Dona Iarinha do ouvido afiado.

Já tinha escutado de um tudo. Era morte de muleta, ambulância que atropela menina, prefeito preso, fugido, investigado, morte morrida, morte matada, morte de gente, morte de rio, morte de terra. Por isso cultivava sua hortinha. Do jeito que tava, daqui uns dias escutava umas máquinas no lugar de gente trabalhando. Nunca entendeu esse povo que queria viver de uma planta só.

Isso falando das coisas que se diz para todo mundo né. Mas escutou é muita coisa que só diziam a ela. Era menina se negando a usar rosa e desfilando com armário azul, vizinha com vizinha, vizinho com vizinho, era tudo junto, mas pros outros não se misturavam. Era também um tal de um morre, outro nasce, outro xinga, outro cresce. Era barulho que não acabava mais. Começava assim, e já ia tudo de novo.

Batida na porta.

Licença Dona Iarinha. Cafezinho? Saudade da senhora.

A chaleira apitava uma, duas, três vezes.

Roubaram a bicicleta, brigou comigo, só tem político safado, cadê as escolas dos índios, tá chegando a soja, quero plantar meu milho, Luverdense tá na final, azul é o novo rosa, mais um acidente na estrada, vizinha separou do vizinho que ficou com a vizinha da frente, casamento do vizinho do lado, nasceu, morreu,

Chega!

Esses olhos de espanto, por quê?

Não é nada não, é só que já passou da hora.

Preciso escutar minha própria voz.

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