Escrever é perceber o mundo

Mas nem sempre a gente gosta do que vê.

Tales Gubes
Ninho de Escritores
4 min readApr 26, 2018

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“Faltam só quatro reais para completar meu almoço”, disse o senhor sentado no chão. Eram cinco horas da tarde.

Com frequência o via prostrado na calçada de uma padaria pela qual passo a caminho do metrô. Suas roupas rasgadas e o aspecto sujo do cabelo e da barba comprida me sugeriam que ele morava na rua. Sua presença em frente à padaria era um contraste gritante entre quem desfrutava pães de queijo, bolos e sanduíches que custam bem mais do que quatro reais.

Uma senhora japonesa baixinha havia recém passado por ele e parou. Sem olhar para trás, tirou uma moeda da carteira e a entregou para a menininha que a acompanhava. A garota foi até o senhor, ficou a um metro dele — distante o bastante para não precisar tocá-lo — e depositou a moeda no chão.

“Fulana, era para entregar a moeda para ele, não para colocar no chão!”, a senhora exclamou. “Desculpa, moço!”.

“Está tudo bem”, o senhor respondeu com sorriso aberto e nenhum traço de desgosto na voz. De soslaio, percebi que a moeda no chão valia cinquenta centavos. Faltavam ainda pelo menos sete pessoas dispostas a partilhar meio real para que ele almoçasse. Ou ao menos jantasse.

Essa cena me marcou por vários ângulos:

  • o contraste entre o homem idoso pedindo dinheiros e as pessoas bem alimentadas do outro lado da janela;
  • o dinheiro dado pela mão da criança;
  • a distância que a menina articulou entre si mesma e aquela fatia de realidade crua;
  • o sorriso terno do homem, que facilmente poderia sentir-se e mostrar-se cansado da violência cotidiana da invisibilidade;
  • a preocupação com a minha vida financeira, que ganha outro peso se comparada à vida daquele homem.

De todos esses ângulos, decidi ficar com outro: o olhar do escritor. Escrever é mais que colocar palavras num suporte físico ou digital.

Escrever é dar sentido para a vida.

Quem escreve precisa de um certo tipo de olhar atento aos detalhes e disposto a criar conexões. Uma mesma cena se presta a infinitos textos. Se revelo que o homem era negro, posso falar de racismo. Se cuido da distância entre a criança e o senhor, posso discutir o receio de se contaminar com o abjeto. Se trato da minha própria distância, posso escrever sobre o privilégio de não precisar me movimentar.

Dependendo de como enxergo e valorizo o mundo, posso julgar os atores dessa cena. O homem pedindo dinheiro em frente a uma padaria — precisava constranger os clientes? A senhora que abriu a carteira — por que nem se deu ao trabalho de voltar ela mesma e dar o dinheiro? A criança — se nessa idade já coloca as moedas à distância, o que será de seu futuro? Ou mesmo eu — passando por ali, criando textos na minha cabeça e preocupado demais com meu próprio umbigo para tirar dinheiro do bolso e contribuir para que o homem tivesse o dinheiro que pedia.

A vida é esse emaranhado de fatos e personagens e ambientes.

Como escritor, meu trabalho é escolher um fio desse novelo e esticá-lo na frente dos leitores. Meu trabalho, como escritor, é enxergar o mundo e dar algum sentido para ele. O trabalho do escritor é traduzir a vida.

Escrever é abrir-se para o mundo, mostrar-se vulnerável pelo que vimos e pelo que não fomos capazes de ver, pelo que escrevemos e pelo que deixamos de escrever. Estou aqui pensando sobre todos os textos que eu gostaria que nascessem dessa mesma cena inicial — e refletindo também sobre tudo o que não quero discutir porque dói demais. Ser escritor é tomar essas decisões e sustentá-las.

Escrever exige responsabilidade, intenção e ousadia.

Mas isso só é suficiente se o escritor for capaz de perceber a vida e estiver disposto a trazer sentido para ela.

Esse olhar de escritor, como absolutamente tudo na vida, pode ser treinado. Para algumas pessoas ele vem mais fácil, quase como um talento natural. Para outras, exige mais trabalho. Enxergando o mundo, percebemos os afetos e relações que o compõem. Com uma pitada de cuidado, nos tornamos capazes também de nos perceber nesses mundos, afetos e relações — e daí traduzir o mundo passa a ser também uma oportunidade de nos tornarmos pessoas melhores.

“Faltam só quatro reais para completar meu almoço”.

Virei a esquina e continuei meu caminho, mas a imagem do homem, da criança e da senhora ficou marcada em minha memória. Apertei o bolso onde guardo meu dinheiro e fiz um cálculo rápido. A despeito de todo meu movimento atual para criar uma reeducação financeira, o dinheiro que eu tinha no momento era suficiente para nós dois.

Mais tarde, à noite, acompanhei dois amigos a um bar. Comi dois bolinhos — um de arroz e outro de carne —, cada um custando R$ 3. Recusei tomar cerveja junto deles porque estou diminuindo o álcool na minha rotina e também porque sabia que isso faria minha fatia da conta aumentar.

Antes de deixar o bar, vi-me num dilema. Eu tinha seis reais trocados, mas não quis me sentir sovina ao entregar o dinheiro contado como minha contribuição para a mesa. Acabei deixando uma nota de dez reais e saí carregando no peito um incômodo que não consegui bem definir qual era.

Agora, escrevendo este texto, compreendi. Eu preferi gastar quatro reais para preservar um senso de autoimagem a oferecê-los para que um homem na rua pudesse almoçar.

Escrever é perceber o mundo, mas nem sempre a gente gosta do que vê.

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Tales Gubes
Ninho de Escritores

Um olhar não-violento para uma vida mais livre, honesta e conectada. Criador do Ninho de Escritores, da Oficina de Carinho e do Jogo pra Vida.