Escrita criativa (1): a mágica

Tales Gubes
Ninho de Escritores
4 min readApr 4, 2014

Foi na escola que aprendi a ler e a escrever. Para mim era algo que vinha fácil. Palavra após palavra, fui me considerando um escritor simplesmente porque fazia com mais facilidade o que outros sofriam para produzir.

Na faculdade, travei quando descobri outras pessoas com capacidades literárias mais desenvolvidas que as minhas. Minha compreensão foi:

não nasci escritor, viver da escrita não é para mim.

De onde veio esse pensamento estúpido? Da ideia de gênio criativo, aquela percepção de que algumas pessoas nascem com um dom e garantem o avanço da humanidade com suas obras de arte maravilhosas.

É uma ideia muito confortável, na realidade, pois nos exime da busca por superação. Se eu não sou tão bom quanto pensava, tudo bem, vou continuar aqui dormindo quentinho na cama e era isso.

Fiz o Ensino Fundamental numa escola em que eu era considerado o mais inteligente da turma. Mudei no Ensino Médio para um colégio mais caro e tornei-me mediano. Esse processo seguiu na faculdade, onde nunca demonstrei excelência em nenhuma habilidade particular.

A explicação, na minha cabeça, tinha a ver com a amplitude dos círculos nos quais eu transitava.

No Ensino Fundamental, eu convivia com pessoas do mesmo bairro. Entre eles, eu tinha determinadas qualidades que se destacavam até certo nível. Quando mudei de escola, meu círculo de convivência passou a incluir a cidade inteira e, assim, trouxe outras habilidades e vivências para o tabuleiro. O mesmo aconteceu com a faculdade e com o mestrado, que elevaram o jogo da vida a níveis nacionais e internacionais.

A minha crença de que a escrita era uma habilidade que vinha no sangue não sustentou o baque. Se assim fosse, eu precisaria aceitar que não era bom o bastante para os círculos mais amplos.

E por um tempo, eu aceitei.

Foi a percepção de que outras pessoas também não eram “boas o bastante” que me trouxe de volta ao jogo. Se o sucesso não está vinculado diretamente ao gênio criativo, o que justificaria algumas pessoas serem bem sucedidas com obras nas quais eu percebia tantos problemas?

Neste momento comecei a entender que há pelo menos dois outros fatores em jogo. Um deles é o caráter social da escrita. Ser bom não basta se não sou lido. Ser bom e ser lido não é suficiente se eu não for lido por pessoas que possam ampliar o alcance da minha escrita (editores, por exemplo).

O segundo fator que notei é que a escrita não depende de um gênio criativo mágico que desce à Terra e abençoa um ou outro indivíduo. Sim, talento existe, mas não é determinante. O que faz a diferença é a soma de talento, repertório e técnica, pois escrever é um processo técnico como qualquer outro.

“Ai, mas eu sento e derramo meus sentimentos na página”.

“Ei, eu escrevo de dentro da minha alma”.

“Ui, meus personagens tomam decisões sozinhos”.

Desculpa, galera, mas não.

A escolha de escrever uma palavra e não outra antes e depois de cada palavra que compõe um texto é racional. Criativa, poética, muitas vezes com ares de mágica, mas racional. É como o trabalho de um ilusionista, que não pode nos deixar perceber o processo por trás do encanto.

Se o percebemos, significa que a mágica falhou.

Dizer que a escrita é técnica não significa roubar sua mágica, mas sim ver o que não funciona e saber o porquê. Significa conhecer o procedimento para operar uma ilusão (a suspensão da descrença necessária na literatura) e saber o que funciona, o que não funciona e o que pode melhorar o efeito de um truque.

A escrita é mágica nesse sentido da ilusão.

Quem fala na escrita como algo que escapa, que se derrama, que se faz sozinha, está encantado com a própria ilusão que cria e míope com relação ao processo. Nada contra quem pensa assim. Eu mesmo pensei desta maneira por anos.

Contudo, se pudesse voltar no tempo, mudaria isso em mim: a conclusão de que há técnica por trás da mágica teria me levado mais cedo a buscar essa tal de técnica do processo criativo.

Com este texto, começo uma série sobre escrita criativa. Minha intenção é refletir sobre meu processo como escritor (minhas dúvidas e descobertas) e como leitor (o que me atrai, o que me afasta). Quero dissecar a ilusão e racionalizar a mágica por trás do ato de escrever para então fazer melhor.

Peço aos amigos escritores e leitores que me acompanhem nesse processo: críticas, dúvidas e sugestões são necessárias e super bem-vindas.

No próximo texto da série: o planejamento da escrita. Até lá!

Esse texto foi publicado originalmente no meu site talesgubes.com dia 4 de abril de 2014 como parte de uma série de textos sobre escrita criativa.

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Tales Gubes
Ninho de Escritores

Um olhar não-violento para uma vida mais livre, honesta e conectada. Criador do Ninho de Escritores, da Oficina de Carinho e do Jogo pra Vida.