Escrita criativa (2): planejamento

Tales Gubes
Ninho de Escritores
7 min readApr 6, 2014

Como nascem os textos? De onde eles vêm, do que se alimentam?

No texto anterior da série sobre escrita criativa, vimos que um texto não nasce por mágica: há técnica por trás dele. Isso não quer dizer que o leitor deva saber disso.

Como o ilusionista, o escritor conhece os truques que tornam a magia literária possível, mas esses truques não devem estar perceptíveis.

Assim como um trabalho de design bem feito, ou revisão bem realizada, acredito que a boa escrita deve ser invisível. Ela precisa atingir o leitor com profundidade, mas jamais fazê-lo pensar “nossa, essa vírgula me fez entender o sentido da vida!”.

Eu decidi começar esta série sobre escrita criativa porque percebi, na minha formação como escritor, que uma pergunta era recorrente:

será que estou fazendo certo?

Essa é uma pergunta poderosa e pode nos paralisar. Ninguém quer fazer errado. Se não estivermos bem alimentados com coragem, podemos desistir frente a essa dúvida.

Por alguns anos foi o que me aconteceu. Muitas perguntas nos paralisam.

Ao final deste texto, argumentarei que não há um jeito certo de fazer literatura. Esse é o grande spoiler. Se o leitor quiser, pode parar por aqui. Eu realmente escrevi isso.

Vou até repetir: não há um método único para escrever.

Quem disser o contrário está apaixonado demais pelo próprio método ou afogado demais na própria arrogância para perceber que outros caminhos são válidos. O processo criativo da escrita é variado e multifacetado. Dependendo do estilo de cada um, é mais fácil seguir um ou outro caminho.

Se o que há para ser dito acabou de ser revelado, por que continuar lendo? Bem… Se você concorda comigo que a boa literatura não está na ideia, mas em como a ideia é trabalhada, então trago aqui algumas noções que podem ser úteis. Aliás, essa é a ideia central por trás dessa série de textos (resta ver como vou trabalhá-la, não é mesmo?).

Pois voltemos à pergunta que abre este texto: como nascem os textos?

Eu trabalho com pelo menos dois métodos distintos. Baseado no livro Writing Fiction for Dummies, falarei sobre quatro métodos, acrescentando a minha experiência pessoal sobre cada um.

Quatro caminhos para a escrita criativa

Certamente há mais do que quatro caminhos para criar literatura, da mesma forma que uns encaixarão melhor do que outros para mim, mas não necessariamente para as outras pessoas.

O importante é percebermos que há um universo de possibilidades. Não interessa tanto qual método é utilizado por uma ou outra pessoa, mas sim qual funciona para o escritor.

1. A escrita sem planejamento

Sim, existe quem senta e derrama palavras na página.

É desse jeito que a maior parte das pessoas acredita que se faz literatura: a mente genial do escritor, quando colocada em frente ao papel ou a um computador, transforma ideias em palavras num fluxo contínuo e cheio de qualidade.

É assim que eu normalmente escrevo meus textos para este site. Tenho uma ideia e começo a escrever. Logo tenho um texto pronto.

Qual é o problema? Geralmente esse texto começa falando de uma coisa e termina desviando para outra, o que é um problema. Um bom texto não se desvia, a não ser de propósito e com propósito.

Essa escrita sem planejamento é gostosa, quase terapêutica.

Enquanto estou escrevendo, vou percebendo até mesmo ideias sobre as quais eu não estava consciente. Minha escrita é mais sincera do que meus pensamentos, em geral, especialmente quando não ativei a mente de editor (tema para texto futuro).

Depois de perceber tudo o que trouxe para a página, porém, é hora de refinar o texto. Voltar, reler, decidir qual é o tópico central. Na ficção, é o caso de encontrar qual é a história que desejava contar, como estão os personagens, se eles se mantêm coerentes do início ao fim etc.

A boa escrita é fruto da reescrita, diz minha professora e eu assino embaixo.

Esse método funciona para muita gente. Apenas faço um alerta: a diferença entre o escritor amador e o escritor profissional é que, para o amador, o trabalho termina quando o texto está todo escrito. Para o profissional, é somente então que o trabalho de verdade começa.

A reescrita não é o tema de hoje, mas quero deixar registrado que ela é uma das etapas mais importantes do processo criativo de qualquer bom escritor.

2. A escrita em constante reescrita

A pessoa senta, escreve uma cena ou capítulo, para tudo e volta para reeditar antes de continuar. E não para até concluir esse processo. Só vai adiante quando tem uma cena amarradinha, linda.

Este método não se diferencia do anterior para textos de blog ou contos. Afinal, são materiais pequenos demais para que a sutil diferença seja percebida. Entretanto, novelas e romances são mais longos e portanto requerem mais tempo, além de uma estrutura mais organizada. É nos meandros dessa estrutura que as diferenças aparecem.

Já tentei trabalhar com esse método para escrever um romance. O fato de eu não haver concluído nenhum (exceto um quando adolescente) sugere que não funcionou para mim.

Na época em que tentei, busquei seguir uma dica que li na internet. Ela dizia o seguinte: todos os dias, retome o texto do início e vá reescrevendo antes de chegar até o momento de escrever novas cenas. Quando houver já muito material antes, comece a reescrita a partir do último capítulo, por exemplo, e então dê seguimento à nova escrita.

Achei muito legal a ideia. Contudo, para textos maiores, eu não sou o tipo de escritor que senta e vai produzindo. Embora eu estivesse sentindo que a qualidade geral da escrita e a minha compreensão sobre as cenas iniciais do romance estavam se elevando, eu travei no desenvolvimento da história.

Isso ocorreu porque na vida sou uma pessoa que planeja, não que vai e faz.

Querendo ou não, o como a gente escreve diz muito sobre como a gente é.

3. A escrita em flocos de neve

Às vezes sentar e sair escrevendo não funciona. O texto trava, as ideias param, o resultado fica clichê e repetitivo. O que a gente faz, depois de sentar e chorar? Ou, de preferência, antes disso acontecer?

Planeja.

Eu estou trabalhando em um romance que se arrasta na minha cabeça há anos. Tenho registros das tentativas de escrevê-lo desde pelo menos o final de 2008. Ano passado inclusive tentei escrevê-lo seguindo o método da escrita sem planejamento, mas durei pouco mais de trinta páginas e não consegui avançar.

Então decidi planejar.

Desliguei o computador, peguei minha caneta verde e várias folhas de papel. Fui rabiscando quem seriam meus personagens, quais cenas eu tinha em mente para a história e aos poucos a coisa toda foi se desenvolvendo. Em vários momentos eu parava, gastava um tempão procurando soluções… Quando terminei, percebi várias coisas sobre a história que eu queria contar, inclusive e especialmente que eu estava errado sobre quem meu protagonista era de verdade. Eu havia sido enganado por ele na condução da história.

O meu planejamento de escrita

Esse método chama-se de flocos de neve (na internet é fácil achá-lo sob o nome snowflake) porque os flocos da neve são fractais, ou seja, têm propriedades matemáticas que garantem que eles sempre sigam se expandindo mesmo a partir de um pontinho minúsculo.

Usar esse método é muito bom para mim: eu planejo questões gerais, mas deixo abertura para que a história mude, se for o caso. Planejo o geral e, nesse processo, enxergo detalhes que serão necessários para que a trama que desenvolvi se sustente.

Ao mesmo tempo, antecipo problemas. Os personagens centrais da minha história estavam incoerentes e eu não havia percebido até então, mesmo convivendo há anos com eles. Planejando, pude perceber isso e agora tenho ferramentas para corrigir essas questões antes que elas destruam a coerência do meu romance.

4. A escrita completamente planejada

Eu não tenho o espírito livre necessário para escrever tudo aos jorros e deixar a história se construir durante o processo da escrita, mas ao mesmo tempo aprecio a possibilidade de escapar daquilo que foi desenhado anteriormente. Essa é uma característica que esse quarto método não favorece.

Neste método, o escritor se dedica a primeiro elaborar uma espécie de resumo expandido contando toda a história. Esse texto inicial será muito menor do que o romance em si, mas contemplará tudo o que deve acontecer de importante, com quem, como, quando e onde.

Eu não trabalho assim. Para não dizer que nunca tentei, minha dissertação de mestrado teve uma estrutura semelhante: organizei inúmeras vezes minhas ideias em versões menores, de três a dez páginas, explicando minhas questões e como eu pretendia desenvolvê-las.

Para mim não funcionou.

Gosto da liberdade de vazar as ideias e reorganizá-las durante o processo, algo que os métodos anteriores oferecem mais como possibilidade do que este último.

Qual é o melhor método de escrita?

Não existe um método melhor. Nem vale a pena perder tempo com essa pergunta.

O que existe é o método que funciona melhor para aquela pessoa. Como procurei mostrar, trabalho contos com um método e construo romances a partir de outro.

Eu hoje sei disso porque me dei ao trabalho de experimentar um por um ao longo de diferentes experiências de vida escrita: blog, pesquisa acadêmica e literatura.

A minha sugestão, portanto, é: experimente.

Se existe o desejo ou a necessidade de escrever, então nada melhor do que descobrir qual é o caminho que torna a escrita mais agradável de produzir e, acima de tudo, mais poderosa para o leitor.

Originally published at talesgubes.com on April 6, 2014.

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Tales Gubes
Ninho de Escritores

Um olhar não-violento para uma vida mais livre, honesta e conectada. Criador do Ninho de Escritores, da Oficina de Carinho e do Jogo pra Vida.