Escrita criativa (6): ser escritor
Fui a um evento em que Marcelino Freire entrevistava Antonio Prata. A conversa foi muito boa e, além de divertida, ainda me deixou pensando em várias coisas.
Nas minhas reflexões sobre ser ou não (um bom) escritor, sempre me pego martelando a pergunta: quando sabemos que somos, de fato, escritores? Para mim, foram duas realizações que me possibilitaram assumir o título de Escritor.
A primeira não foi bem uma realização, mas sim um efeito prolongado de ingenuidade infantil. Eu era escritor porque escrevia e queria escrever. Isso me bastava. Essa, porém, foi uma constatação tão frágil quanto o meu ego na época, que, conforme comentei em textos anteriores, foi varrido para o limbo por longos anos (o legal é que, dependendo do meu humor, posso colocar a culpa disso em outras pessoas).
A segunda realização foi mais material. No início de 2013, participei de um concurso organizado por uma editora e tive um conto selecionado, que três ou quatro meses depois virou livro. A partir daí eu me senti empoderado para dizer “tenho um livro, sou escritor”. É engraçado como eu sempre acrescento “não é um livro só meu, mas já foi um primeiro passo”, como se eu precisasse justificar minha escrita, ou como se esse título de escritor fosse frágil e minha carteirinha do clube dos escritores pudesse ser confiscada a qualquer momento.
A entrevista do Antonio Prado me ofereceu uma terceira realização. Ela é muito óbvia e acompanha todas as minhas explicações sobre gênero e sexualidade, mas eu nunca havia propriamente pensado sobre o campo literário com ela.
Na entrevista, alguém do público perguntou se Antonio sofrera muita pressão por ser filho de pai escritor. A resposta dele me deixou boquiaberto não por haver sido fantástica, mas por descortinar uma obviedade ignorada. Ele disse que ser filho de escritor o ajudou porque desde criança ele viu que ser escritor não é um hobbie, algo que a gente faz nas horas vagas. Ele entendeu e acompanhou o pai alimentar a família com o seu trabalho de escritor.
Ou seja, a infância de Antonio Prata lhe ensinou que escrever não era um exercício mágico e fora da realidade, mas sim um trabalho como qualquer outro. Eu ainda hoje tenho dificuldade para lembrar que a escrita é uma ação humana inserida em um contexto histórico e que, portanto, está sujeita às construções sociais que a tornam o que é. Ser arte, ser escritor, ser boa literatura… Todas essas ideias são parte de uma construção social elaborada que justifica determinados tipos de atitude e de obra enquanto questiona e tira de circulação outras.
Ser escritor parece ser, portanto, resultado de sucessos em se inserir no campo literário. O que é “se inserir no campo literário” não é tão relevante. Eu entrei por uma editora pequena voltada para temática LGBT. Antonio Prata escreve para a Folha de São Paulo e publica por grandes editoras. Há quem tenha alcançado fama via blog.
Eu não gosto dessa ideia de ser escritor somente quando inserido em um campo literário. Não gosto e não aceito.
Isso não é apenas um mimimi de quem quer ser mais do que é (embora eu queira ser muito mais do que sou). Isso sou eu refutando a ideia de só ser escritor se o resto do mundo me autorizar.
Ser escritor demanda coragem e autoconfiança para desafiar o que os outros têm a dizer. Se assumir escritor é se posicionar no mundo e defender essa posição.
Falando assim parece que o mundo inteiro bate à minha porta para dizer que eu não sou escritor. Não, só existe uma pessoa que vez ou outra sussurra no meu ouvido essa bobagem. Eu digo a mim mesmo que não sou escritor.
Por quê?
Penso que tudo sempre volta ao medo de não alcançar as expectativas dos outros.
Há pessoas que eu olho e que, pelo jeito de agir e falar, me fazem acreditar que são escritoras de verdade. Minha professora, um colega, alguém que publica por grandes editoras, muita gente.
Se alguém me dissesse, quando eu era criança, não sei se eu acreditaria: ser escritor não tem a ver só com escrever, mas também com fé, com acreditar em si mesmo frente a um mundo que assusta.
Não vou mentir e dizer que hoje eu estou mais forte e acredito, que estou pronto para a briga e que nada vai me derrubar. Eu estou mais forte, não tenho dúvidas, mas lembrar que sou um escritor e que posso enfrentar o mundo é um exercício diário.
Acima de tudo, preciso lembrar que ninguém — além de mim mesmo — pode dar permissão para eu ser quem sou.
Originally published at talesgubes.com on May 9, 2014.