Esqueci-minto
Martin olhou pela janela e viu marcas negras descendo pelo vidro da janela. Aproximou-se e viu toda a rua num completo negrume, lá ao fundo via correr um risco branco. O que havia acontecido com a chuva?
No dia 12 de setembro de 1977 a chuva negra começou a cair, e não cessou de cair até o fim do povoado de Riuro. Foram dois anos de chuva ininterrupta. Quando Martin saiu à rua naquele dia, condenou suas roupas ao negrume que tomou a cidade de assalto. E ao mesmo tempo contemplou a claridade do rio que se tornara de um branco limpíssimo. Ao redor do rio, toda a população do povoado viera ver, alarmada pelos gritos dos meninos que chamavam todos, pararam todos às margens do rio, pintados de um negro intenso, em contraste com o branco do rio. Os pingos negros de chuva que caíam no rio logo eram neutralizados pela brancura do rio, que permanecia intacta.
Quando Martin voltou para casa, encafifado com a estranheza do acontecimento, ele e sua mulher estavam inteiros pintados de preto. Eram recém casados. Foram juntos se lavar, e a água do chuveiro caía branca. Se lavaram com o brancume do chuveiro, a cor da pele não se via mais. Foram até a pia da cozinha, e a água saía branca. Não confiaram na pureza da água. Um olhou pro outro e o pensamento conjunto foi “vamos esperar essa chuva passar”.
As notícias sobre a chuva negra em Riuro percorreram grandes distâncias, mas a chuva não parou de cair. E o rio não voltou à cor original. Nas torneiras a água saía branca, e na rua a chuva caía negra. Todos que andavam na rua se pintavam de preto, todos que se banhavam, ficavam brancos. A água branca, depois de 3 dias, precisou ser tomada. No rádio diziam ser própria para beber. Escolha não havia. As roupas, depois de lavadas, todas se pintavam de branco.
Dentro das casas, os resquícios de cor eram cuidadosamente preservados, para não serem tomados pelo preto e pelo branco, que lentamente enlouquecia o povo de Riuro. Ído um mês a chuva não parou de cair. As ruas estavam totalmente enlameadas, os animais estavam em sua maioria encalhados, o rio continuava cheio e o branco do rio era a única força combatente do preto da chuva.
À noite não se podia ver nada, de dia não se podia caminhar tamanho estrago feito pela chuva.
Os habitantes de Riuro estavam todos pintados ou de preto, ou de branco. Viajantes vinham de longe ver o acontecido, os cavalos iam embora completamente pretos, dentro dos automóveis restava alguma cor. Os passageiros saíam e logo se enlameavam todos na lama negra de Riuro, seus guarda-chuvas não serviam de nada, a chuva vinha por todos os lados. Voltavam aos seus automóveis e pintavam o interior do carro de preto, e íam embora. Depois das primeiras semanas Riuro foi esquecido. O rádio continuava a anunciar a segurança da água, que continuava branca, e todos passaram a se trancafiar dentro de casa. Não havia nada o que fazer lá fora enquanto a chuva não parasse de cair. O rádio se calou.
Todos se tornaram bonecos pretos ou brancos, paralisados dentro de casa, olhando o negrume completo através de uma janela que mal se mantinha transparente. Muitos morreram de fome, outros permaneceram até os últimos dias. Alguns tentaram fugir mas não conseguiram escapar da lama, não haviam animais vivos, não havia automóveis capazes de enfrentar a lama negra. Não havia força nas pernas para uma população que morria de fome. Os bonecos Brancos que tentavam se aventurar pelo negrume completo daquilo que outrora fora um povoado próspero, logo eram engolidos pelo negrume que tomava conta de tudo o que encontrava. E a chuva os enterrava na lama que produzia.
Depois de um ano de chuva, ninguém mais sabia nada sobre Riuro. Na província de Riveto dizia-se que a chuva negra de Riuro continuava a cair, mas ninguém voltou lá para conferir. Em cinco anos se esqueceriam da existência ou da localização da cidade. Riuro se tornaria lenda.
A estrada estava há muito fechada. Martin e sua esposa continuavam paralisados dentro de casa, fixados em um ponto azul que se salvara num azulejo do banheiro. Volta e meia iam se assegurar que a chuva continuava a cair. E voltavam ao banheiro olhar o azulejo azul, com medo de o estragarem. Os outros pontos coloridos da casa foram acidentalmente destruídos por esbarrões, acidentes ou goteiras.
A miséria e a escuridão tomou Riuro por completo. Dois anos passados, não havia mais muita coisa viva no povoado. Até que um dia o rio Omobô inundou e tirou toda a cidade de Riuro do escuro. A cidade ficou inteira na branquidão, ou a branquidão se tornou a cidade.
Martin e sua esposa continuavam vivos, sobrevivendo daquilo que haveria de ser a plantação seguinte e de força retirada das orações que faziam ao azulejo azul, pedindo para que tudo voltasse ao normal, e para que a chuva enfim parasse. Continuavam olhando o azulejo azul do banheiro em completa fixação, pedindo a ele a salvação, que restaurasse a cor do mundo. E aí a onda branca subiu e engoliu o azulejo azul e tudo se tornou branco. Martin e sua mulher se tornaram brancos, a cidade se tornou branca, a lama se tornou branca, o azulejo azul ficou branco, os mortos se tornaram brancos.
Quando o rio Omobô voltou ao curso normal, não havia mais cidade alguma. Riuro virou história daqueles que ouviam o rádio em 1977–78. No lugar da cidade cresceram árvores e a natureza tomou conta do lugar. A chuva negra enfim parou e o rio retornou cristalino ao curso natural. E Riuro nunca existiu.