Esquecida Memorável
Quando aceitou o emprego, sabia que seria para sempre. Ou ao menos, deveria ser. Havia sido contratada pela própria Dona Soledad, que mui sinceramente a advertiu sobre seus problemas e o que estava por vir.
Glaucia já trabalhava como cuidadora de idosos há dez anos quando a indicaram para o trabalho: cuidar de Dona Soledad, uma senhora espanhola de 72 anos, cuja vida longe de seu país natal a havia feito perder contato com seus familiares distantes. Ela havia sido recém-diagnosticada com doença de Alzheimer, pouco tempo após haver enviuvado.
Durante a entrevista para a vaga, a senhora lhe perguntou sobre sua vida. Glaucia não tinha marido, nem filhos; dedicou-se à enfermagem e, mais recentemente, a cuidar de idosos. Dona Soledad, por sua vez, contou a ela sobre o amor vivido com o esposo Nestor e das tantas vezes que tentaram ter filhos — sem sucesso. A idosa temia que a doença avançasse sem ter a quem recorrer, pois sabia que precisaria de cuidados até o fim da vida. Por isso, estava entrevistando várias moças até que encontrasse uma que lhe fizesse sentir não apenas confiança, mas, sobretudo, ternura.
Logo no primeiro dia de trabalho, Glaucia recebeu as orientações da nova patroa: Soledad tinha apenas uma amiga viva — Irene. Apenas ela e mais ninguém estava autorizado a fazer visitas.
De início, as instruções não pareciam ter muito sentido, já que a própria dona da casa informava se atenderia ou não ao telefone ou se receberia Irene para um chá. Além disso, agendava suas consultas médicas, apenas comunicando a cuidadora sobre a data e horário em que sairiam, e caminhava sozinha até a agência bancária para retirar dinheiro para pagar as despesas da casa, incluindo o salário da funcionária.
Entretanto, após os primeiros anos de trabalho, Glaucia compreendeu melhor como as instruções dadas naquele momento, quando a lucidez ainda era presente nas falas e ações de Dona Soledad, seriam fundamentais no decorrer dos anos e da evolução de sua doença.
Conforme o quadro da doença se agravava, o afeto entre paciente e cuidadora se intensificava. Glaucia era sempre muito gentil e paciente cuidando de Dona Soledad como se fosse a filha que ela tanto desejara. Passavam muito tempo juntas, apenas as duas, desde o incidente no último dia do chá com Irene.
Era um domingo à tarde, quando ela tocou a campainha no horário combinado. Glaucia havia posto a mesa com um bolo de fubá, biscoitos caseiros e o chá de erva-doce de que elas tanto gostavam. A cuidadora recebeu Irene e a levou até a mesa da sala de jantar. Quando Dona Soledad chegou à sala, começou a se agitar, pedindo que Glaucia retirasse aquela estranha de sua casa. Irene tentou se aproximar da amiga, dizendo-lhe quem era, mas a idosa, já tendo a doença mais avançada, não pôde reconhecer mais a única amiga e atirou-lhe a bandeja de biscoitos. Desde então, o perfume de erva-doce não se sentiu mais naquela sala.
Estando sempre apenas as duas, aprofundaram a relação e os laços. Glaucia sabia da frustração da patroa por não ter construído a família com a qual sonhava, das saudades que ela sentia do falecido esposo e de como adoravam ir ao cinema juntos. Sempre que a ouvia contando as histórias de seu passado, Glaucia pensava em como ela não tinha nada interessante a contar. Não havia encontrado um grande amor, nem tentado ter um filho. Vivia para cuidar dos outros, um dia por vez, sem se preocupar com o seu próprio futuro.
No dia em que a cadeira de rodas chegou, um céu muito escuro se fechou sobre elas. Já próximo ao aniversário de 80 anos, Dona Soledad encontrava-se muito debilitada, passando mais tempo ensimesmada. Nem mesmo a Glaucia ela reconhecia em diversos momentos. — Vamos testar sua carruagem, madame? — a idosa não esboçou reação alguma quando foi colocada em sua cadeira.
Pesadamente o céu desabou. Uma chuva de pingos grossos começou a inundar o jardim. A cuidadora levou Dona Soledad até a janela para que ela pudesse ver a tempestade.
– Nestor, vamos dançar lá fora?
– Como? A senhora quer sair na chuva?
– Vamos, Nestor! Igual a Gene Kelly! Como fizemos em nossa lua-de-mel.
Emocionada, Glaucia buscou um chapéu de Seu Nestor que estava guardado no maleiro do armário da suíte e o vestiu. Abriu a porta que dava acesso ao jardim, deu play em “Singing in the rain” em seu celular e saiu cantando e rodopiando a cadeira para fora, batendo os pés nas poças, permitindo que a chuva devolvesse um sorriso na face de sua patroa há tanto entristecida e debilitada. Viver devia ser isso; ser capaz de enxergar o que se pode fazer pela alegria do outro e vice-versa.
Voltaram para dentro e como a uma criança pequena, a cuidadora enxugou sua patroa com delicadeza, secando o excesso de água antes que tomasse friagem. Dona Soledad permanecia quieta, mas com um doce sorriso congelado em seus finos lábios. Deixou-se banhar, não resistindo aos cuidados de higiene e até mesmo ajudou Glaucia a vesti-la com seu pijama. Ao ser colocada na cama, segurou com força a mão de sua cuidadora: obrigada por tanto, minha querida. Não tinha um dia feliz como esse há tempos. Lembrarei para sempre. Então, placidamente, cerrou os olhos.