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Euceano

Laís Grilletti
Ninho de Escritores
3 min readFeb 25, 2021

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Era uma gotícula de incomparável personalidade. Chamava-se Goti. Vejo em seu rosto a preocupação. Não, não corra para decorar os nomes de toda a chuvarada. Goti se batizou sozinha mergulhando em água benta. Nenhuma de suas colegas jamais se importou em ter um nome.

Mas Goti era audaz. Sabia que a vida era mais do que um pingar sem intenção. Buscava seu propósito. Acreditava um dia encontrar sua razão de gotejar no mundo. Afinal, se um Criador existisse, e Goti acreditava que nenhuma gotícula pingava em vão, ele deveria ter destinado a ela um propósito à altura de seus talentos e intenções.

Para isso, a pequena gotinha trabalhava até encharcar. Na chuva, caia em ângulo reto, mas evitava as poças d’água. Preferia as janelas em que pudesse receber a atenção de um olhar humano diante da tarde nublada. Na floresta tropical, já foi orvalho viajando de folha em folha entre as mais belas vegetações que garoou.

Tentou também caminhos alternativos. Experimentou, por dias, ser goteira no teto, impossível de ignorar. Ouviu falar que muitos se preenchem do incômodo à vida alheia. Mas isso também não adiantou. Goti respingava por todos os lados, mas não se encontrava em lado algum.

Perguntava-se se um dia, em pleno temporal, mudaria o ângulo da queda e descobriria, enfim, um novo gotejar. Seria a vida, então, um chuviscar ininterrupto até secar?

As esperanças escorriam, enquanto sua fé vertia sem fim. Goti, enfim, chorou. Os olhos que marejou a derrubaram pela bochecha. Fez a curva no queixo, se condensou à lágrima esquerda e caiu.

Ao se derramar como um grande pingo na blusa, a lágrima esquerda gargalhou. “Uau, você reparou essa vista?”. Goti não tinha reparado. Estava enfiada em seus próprios pensamentos, presa ao umbigo imaginário que carregam as gotículas em busca de si. “Pois repare da próxima vez. O melhor do gotejar está fora de nós.”.

Enquanto evaporava, Goti pensou no que ouviu. Nunca havia gotejado de olho na queda. Preocupada com o vento que a levaria a novas direções, achava que tudo se encerrava em suas bordas. Mas ela era só uma gota.

Antes de se juntar à nuvem carregada que acizentava o céu, uma ideia borrifou suas reflexões. E se, em vez de fechar o olhos, ela olhasse ao redor durante a queda? A ideia borrifou seus pensamentos de curiosidade. Pela primeira vez, Goti veria além de si mesma.

Enfim, choveu.

Milhares e milhares de gotas se debruçavam da nuvem, saltando em direção ao chão. Deixavam que o vento as levasse para outras direções. Escorriam nas calhas, campos e cabelos. Formavam poças, molhavam a terra, enchiam o mar. Goti admirou a liberdade de cair sem controlar. Quando deu por si, estava flutuando. Era uma gotícula de água suspensa no ar.

O sol se antecipou, enquanto as gotas de chuva ainda faziam o seu trabalho. Um espectro de luz dispersa atravessou Goti, refletindo uma cor vibrante, festiva, laranja. Olhou para si admirada, mas logo lembrou do que a lágrima esquerda dizia. Se ela se via radiante, como estaria lá fora? Espiou seus arredores e, então, ela viu.

Milhares de partículas multicoloridas dançavam pelo céu. Vermelhas, amarelas e verdes; azul, violeta e anil. Formavam faixas vibrantes de cores que não caberiam em sete palavras. Eram um degradê sem fim.

Olhando para si, Goti via o laranja. Olhando para o lado, via a potência policromática que só existe no plural.

Goti era parte de um espetáculo que transbordava suas margens. As outras gotas, até então outras, compartilhavam tanto de sua natureza que se condensavam em nós.

Já não era mais uma gotícula suspensa no ar.

Era Arco-Íris.

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Laís Grilletti
Ninho de Escritores

Escritora e contadora de histórias, autora do livro Minu e a cidade sem tempo. Escreve histórias infantis que, vez ou outra, caem nas mãos dos adultos.