Expansões de uma cena de ação
Venho convidando participantes da newsletter do Ninho de Escritores a fazerem exercícios a partir de textos criados por outras pessoas que também responderam a um desafio da newsletter.
O texto a ser recriado desta vez foi escrito por Mônica Machado:
A última corrida
Ela sentia falta de correr, amanheceu, levantou da cama, vestiu a roupa, relógio e máscara, desceu a escada, abriu o portão e saiu pela primeira vez em meses, correu como a primeira vez na vida, não olhou para trás. Os vizinhos era a natureza que ela havia esquecido, correu forte, puxou o ar, a máscara a sufocava, o coração disparou, o suor escorreu frio, tirou a máscara para respirar, mas era tarde, a vista escureceu, o ritmo caiu, os olhos pesaram, os pensamentos fugiram e a última coisa que sentiu foi a dor do seu corpo ao tocar o chão.
Propus que pessoas reescrevessem o texto contando as mesmas coisas, porém desta vez entre 100 a 250 palavras.
A seguir compartilho os textos recebidos.
Cândida foi, durante toda a vida, dona de casa e esposa dedicada. Quando o marido sumiu, decidiu ser cuidadora de idosos. Desde que começou a pandemia, porém, não tendo que se preocupar com o bem-estar dos outros, notou que mal lembrava da última vez em que cuidou de si mesma. Ela morava sozinha e tinha poucos conhecidos da igreja. Os filhos, todos adultos, quase nunca a telefonavam. Trancada em casa há meses, estranhou certa falta de ar e uma palpitação inquieta, pois sempre teve uma paciência de ferro. Naquela manhã, acordou exausta de sonhos aflitos, levantou da cama, vestiu a roupa, colocou a máscara e abriu o portão como uma sonâmbula. Sentia falta de correr. E correu. Saiu cambaleando em disparada como se fosse a primeira vez, sem olhar para trás. Liberta, passeava em suas veias uma intensa adrenalina feito uma revolta há muito tempo aguardada. A brisa fresca da manhã contrastava com o seu hálito quente e o líquido salgado que escorria pela testa. Quando já atingia a borda da esquina, percebeu o coração disparar, os olhos escurecerem e as pernas perderem o controle. Tirou a máscara em vão, caindo rapidamente de encontro ao asfalto. Os vizinhos no portão, sem entender a ação da senhora sempre tão pacata, correram para acudir, mas recuaram de espanto ao ver seu rosto iluminado.
(por Suzane Silveira)
A falta que sentia acabou. Acabou ali a ausência brumosa que preenchia tudo. Que definia tudo. Enquanto se erguia também se reconhecia e podia sentir o impacto do auto encontro. Feito fruta quando cai do pé. Cair para mostrar que está viva. Sorriu. Sorriu um sorriso tênue como porta que abre lentamente para saber quem está do lado de fora. Precisava escancarar essa porta pesada e deixar entrar ar e luz. Enquanto sentia o amanhecer fluindo por toda pele, músculos e chegando até os fios cabelo, notava o sangue percorrendo as veias e dando vigor como mão que empurra os ombros para forçar os primeiros passos. E deu. Enquanto a porta se abria, tudo se alumiava feito sol dispersando neblina densa enquanto se sobe a serra de Petrópolis. Podia sentir o calor fazendo combustão por dentro. Olhou para fora e sentiu que havia chegado a hora. Seus passos levavam até ao portão que tantas vezes lembrou as grades de uma cela. Sem pestanejar sorveu o ar, as cores e correu. Correu para chegar primeiro. Correu com pressa. Correu para não ser alcançada. Não podia parar. Sentiu tudo passando ao redor, casas, árvores, carros, vizinhos e estradas. Correu e deixou para trás esse vislumbre de coisas sem forma definida e que não podia alcançá-la. Correu para o seu novo ano que estava começando agora. Estava de volta e não ia tocar o chão novamente!
(por Quesia Cunha)
A última corrida.
Ela não se incomodava de estar em casa há tanto tempo como se propusera a fazer, todavia sentia falta de correr e não ía pelo medo de morrer, até este dia. Antes do despertador tocar, levantou da cama de supetão, tomou banho rápido, teve dificuldade de vestir a roupa que estava mais colada do que ela gostaria, colocou o relógio, a máscara e saiu do quarto. Desceu a escada de dois em dois degraus, abriu as sete portas que levava ao portão e viu o mundo pela primeira vez em tantos meses, correu como a primeira vez em toda vida. O corpo parecia não entender o que estava acontecendo, tentava acompanhar para não deixá-la só. A vizinhança era a natureza que ela havia esquecido, nenhuma casa por perto, só a imensidão da serra. Ela corria olhando para o chão com receio de cair, haviam demasiadas pedras, puxava o ar com força que era impedido de entrar pela máscara que a sufocava, começou a ficar ofegante, mas decidiu continuar, logo o coração disparou a ponto do relógio apitar, o suor escorreu frio, ainda assim, desistir não estava nos seus planos, o ritmo caiu. Levou a mão ao rosto, tirou a máscara tentando respirar, mas não tinha mais forças para isso. O dia que havia acabado de nascer escureceu, diminuiu os passos cambaleando sobre a terra alaranjada, os olhos fecharam, os pensamentos fugiram, as pernas falharam e a última coisa que sentiu foi a
dor do seu corpo ao tocar o chão.
(por Mônica Machado)
Bia era prática feito rádio-relógio! Preto, quadrado, tijolão mesmo. Números digitais vermelho fogo do tamanho de letras num caderno de caligrafia.
Embora gente, Bia era prática como uma máquina. A mãe era igualzinha, se não entregassem o leite às seis, o sol nem nascia. O pai era outro; todo domingo lustrava o Fiesta. Pais eram máquinas com prazo de validade curto como pêssegos. As engrenagens enferrujaram, as juntas desgastaram. Não duraram muito.
Bia queria mesmo saber o que tinha no fim do arco-íris. A velhice. Por isso que Bia corria. Por isso tinha uma gaveta para poliéster e rabicós coloridos para rabos de cavalo. Aí era só endireitar a postura, respirar daquele jeito que mulheres grávidas fazem nos filmes e ir em frente.
Corra Forrest, Corra!.
Bia gostava dos filmes da tarde. Não empatavam a corrida matinal, nem o trabalho noturno como babá folguista. Bia adorava não se prender à mesma criança, mas fazer um tour cobrindo folgas das babás mensalistas e cuidar das coisas quando os pais saíam para namorar. Bia não entendia disso, mas gostava dos bebês. Costumava pensar neles como o brinquedo dentro dos ovos de páscoa, que Bia, com intolerância a lactose, não podia comer.
Seis meses de quarentena oxidaram Bia. Como pôr uma máscara num mundo com tantas faces? Ela se perguntava, mas não quebrava regras. Não até aquela manhã em que o rádio-relógio dos pais quebrou de vez.
Bia abriu a gaveta de poliéster. Botou máscara sobre máscara.
Corra, Bia. Corra!
(por LeahBHarper)
Obrigado às pessoas que participaram e a você, que leu até aqui!