Expectativa Furada

Daniela Zanutto
Ninho de Escritores
5 min readSep 26, 2020

Nome?

Toda vez que ela tinha que dizer seu nome, envergonhava-se dele. Preferia ser chamada pelos apelidos do que pelo nome próprio: Afrodite. Que ideia da mãe tê-la nomeado de forma tão esdrúxula. Dizia ela que tinha ouvido na casa de um professor onde trabalhava esse nome tão singular. Ele contou à mãe que Afrodite foi a mulher mais linda que já havia existido em toda a história; deusa do amor e da beleza. Ela então apostou na sorte que esse nome poderia trazer à sua filha.

Afrodite dos Santos Silva.

Aos 18 anos, Dite já tinha trabalhado em casa de família assim como sua mãe, mas ao atingir a maioridade, resolveu buscar uma oportunidade no mercado de trabalho formal. Queria ter carteira assinada, aqueles vales-restaurante, fundo de garantia. Estava cansada de limpar casa e cozinhar. Queria um emprego num local chique, onde pessoas bonitas e importantes circulassem. Foi quando viu nos classificados do Estadão a vaga de ascensorista no Terraço Italia.

Venha para a entrevista de traje social, ok?

Foi se informar com a mãe sobre o que deveria usar. Saia, uma blusa bonita e meia fina. Ela, habituada a usar roupas velhas durante as limpezas que fazia, ficou pensando se tinha alguma peça do traje solicitado pela entrevistadora. Mãe, empresta um dinheirinho para comprar uma saia e uma meia-calça?

A mãe teve então, uma ideia: na casa da patroa havia uma quantidade enorme de saias, blusas e sapatos, tantos, que a mulher não precisaria repetir as peças antes de se passar um mês inteiro. Dona Adriana nem lembra de algumas roupas, Dite. Vou te emprestar a saia, a camisa e o sapato. Só não dá para emprestar a meia, que laceia depois de usada.

Em casa, Afrodite experimentou a saia azul com a camisa branca. Sabia que ia ficar perfeito em você, deusinha! Nem tanto, pois Afrodite era magra, ossuda e muito alta; a saia ficou larga na cintura, acima dos joelhos e a camisa desengonçada nos ombros. O par de sapatos pretos possuíam bico e salto finos, aos quais seus pés quase sempre de sandálias não estavam habituados. O modelo chique apertava, incomodava e prenunciava as bolhas que certamente se fariam em seus não-acostumados pés.

No entanto, a meia da loba fez juz tanto ao comercial quanto aos 10.000 cruzados investidos nela e vestiu perfeitamente aderindo bem às pernas finas, deixando-as com uma cor de pele-bege-estranha.

Tô indo mãe. Não posso atrasar! São 2 ônibus mais o metrô para chegar lá.

Deusinha, passa um batom.

Pôs-se em frente ao espelho do banheiro para contornar seus lábios e tentar encontrar a beleza de deusa que a mãe tanto falava: procurava nos lábios finos, no nariz protuberante, nos ralos cílios sobre os olhos negros a tal beleza deusuística que a mãe a atribuia. Mas apenas viu a si mesma com os lábios encarnados e mais nada.

Sorte filha!

Esperando o primeiro ônibus, recostou no ponto e ao se deslocar para dar sinal de parada, sentiu um incômodo na perna direita, como se uma farpa a houvesse pinicado. Subiu incomodada as escadas, passou pela roleta e permaneceu em pé segurando-se como podia, até puxar a cordinha para descer no próximo ponto.

Ô moça! Tem um ras…

Tarde demais. Afrodite não ouviu a tempo o que aquele rapaz que tanto olhava para suas pernas dentro do ônibus queria lhe falar.

Ao chegar no ponto onde pegaria o segundo ônibus, sentiu que no local onde pinicava havia um furo. Imediatamente pôs o dedo na região da batata da perna e lá estava um pedacinho de madeira do primeiro ponto: perfurando a meia, provocando o incômodo e mais que isso: causando desleixo no traje exigido para a entrevista! Por sorte, o furo ainda era pequeno e o fio não havia corrido tanto: se conseguisse uma base de esmalte, poderia consertar o estrago na meia e seguir para a entrevista.

Para evitar qualquer movimento brusco que pudesse piorar o estado da meia, subiu desengonçadamente o primeiro degrau do segundo ônibus: RASSSG! Segundo degrau: RASSSSSSSG! Terceiro e último RASSSSSSSSSSSSSSSG: aquele rasgo já havia sudio até o meio da coxa. Não haveria base suficiente para consertar o furo.

Caiu no choro. O que faria? Se comprasse outra meia, não lhe sobraria dinheiro para tomar as conduções de volta para casa, mas se não estivesse usando meia, não poderia nem participar da entrevista. Enxugou as lágrimas e decidiu descer no Anhangabaú e procurar uma nova meia-calça no Mappin.

Moça, pode me ajudar: precisa de uma meia como essa: cor de pele, da loba. Posso me trocar no provador?

Caminhou do Viaduto do Chá até a Avenida Ipiranga. Sentindo bolhas e calos, mas de meia intacta, pegou seu lugar na fila para a entrevista. Havia umas dez moças trajadas como ela à sua frente, mas todas pareciam saídas de um concurso de miss, bem maquiadas, roupas ajustadas ao corpo, esguias, cabelos lisos em sua maioria. Mirou-se dos pés à altura do peito e se sentiu inapropriada com aquela saia curta e larga na cintura. Depois pegou um espelhinho na bolsa e viu o resultado da odisseia percorrida para trocar a meia: os cabelos presos no coque, já desmanchavam; no rosto viam-se gotículas de suor por toda a testa e buço.

Eu não pertenço a esse mundo.

Saiu da fila e lembrando-se que estava sem dinheiro para as conduções descalçou aqueles sapatos que tanto já lhe haviam machucado os pés. Colocou-os na bolsa e seguiu seu trajeto de volta à casa, tendo as meias e sonhos furados e desviados pelas ruas e calçadas mal-cuidadas do centro da cidade.

Afrodite Silva? Afrodite dos Santos Silva?

Há 3 quadras de distância do Terraço Italia, a recrutadora chamou seu nome por mais de uma vez. Ao não obter resposta, perguntou à uma das manequins que estavam na fila para participar de uma seleção publicitária, que seria filmada no restaurante do Terraço, se conhecia alguém com aquele nome.

Uma pena que não tenha vindo. Não está fácil encontrar uma ascensorista.

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Daniela Zanutto
Ninho de Escritores

Meus textos falam sobre o feminino e as suas implicações de uma maneira muito pessoal.