Fôlegos únicos de uma cena de ação

Tales Gubes
Ninho de Escritores
6 min readOct 17, 2020
Foto de NEOSiAM 2020 no Pexels

Dando sequência aos exercícios a partir das cenas de ação escritas por assinantes da newsletter do Ninho de Escritores, hoje veremos uma série de textos produzidos a partir a cena de Marcos Mancini:

Ele estava sentado em uma cadeira de couro toda já destroçada pelo tempo e por seus sentimentos gastos com o tempo corrosivo que sua alma estava ali sempre debruçada naquele poço escuro sem fim naquela máquina de escrever corrosiva que fazia seus olhos brilharem seu coração chamuscar e sua mente enlouquecer, ainda estava de ressaca da noite anterior, contemplava o pôr do sol da janela e tomava um trago e fumava maconha, cansou dos cigarros, queria relaxar, queria ser hippie mas seu sangue quente e espírito explosivo não permitem. Se arrepende ás vezes dos atos que faz e das coisas que ocorrem mas não pode impedir que elas ocorram, é uma grande canalhice e falta de vergonha na cara, sentado quase nu apenas de roupão, ali degladiando consigo mesmo naquele maquinário atrasado, o calor no inverno o incomoda, moscas e malditos pernilongos rondam a janela e entram com o seu zumbido infernal, seus gato correm alucinados atrás e e ele não posta porra nenhuma em redes sociais mas escrever sem esperança aguardando viver dessa literatura que o salva e o condena, sua cabeça estoura ainda pelo álcool que sai por seus poros relembrando os acontecimentos de ontem. Bares imundos, prostitutas bêbadas e vagabundos enchendo seu saco enquanto ele estoura tacos de sinuca em suas faces nojentas e sendo chutado para fora enquanto chovia voltando fumando um cigarro no seu apartamento imundo com aluguel atrasado. (Marcos Mancini)

O convite a partir deste texto foi o seguinte: escrever uma cena inteira entre 100 e 200 palavras em uma única frase.

Vejamos o que foi produzido.

Entrei no boteco e já era quase madrugada e eu ali sozinha era tudo o que não devia fazer, mas a essa altura da minha vida foda-se o que eu não devia fazer, então eu estava com o Bukowski no bolso e um canivete na bota pra me proteger, cheguei no bar e pedi uma cerveja e fui logo notada por um bando de homens que estavam lá, um bando de cretinos, com certeza, mas nessa noite eu procurava mesmo o azar e daí que um homem alto com uma barba enorme se sentou do meu lado e disse e aí, gata, posso te pagar uma bebida? e eu respondi que podia, perguntando o que ele lia e ele não respondeu, o que me deixou puta, porque ele não devia ler porra nada, enfim tudo bem, depois ele me beijou com bafo de cigarro, colocando a mão na minha coxa, eu pensei até que esse idiota beija bem e depois de alguns goles falei a vida é isso, cara, tudo queimando, então você pode rir, se embriagar, fazer um poema e dizer que está tudo bem, mas lá no fundo está tudo queimando, o terror está sempre lá, a feiúra está sempre lá, sabe, mulher, homem, criança, amigos, tudo queimando, o fogo atravessando as artérias, não há saída, nunca há escapatória de coisa alguma, você vai estar sempre queimando, você vai ser queimado até o túmulo, é isso, até o último minuto que você respirar você vai queimar, é atravessar o quarto e beber um copo de água e se acalmar, entende? Há sempre coisas queimando, rasgando em você, é o universo inteiro, é o peso de tudo, aí você se convence de dormir as oito horas de sono, que bom, e se deixa moldar, mas no fundo está queimando, então o cara me olhou com uma expressão de espanto e saiu dizendo que eu era louca, e eu sorri, pedindo pro homem do bar um misto-quente.

(Suzane Silveira)

Por favor não vá embora ,te peço de joelhos,pois desde a última vez que você me deixou ,voltei a fazer besteiras daquelas que você sempre me recriminou,porém você sabe perfeitamente que não faço isso porque quero,mas sim para te castigar de todos os conselhos que tentei te dar e você infringiu, fazendo das minhas palavras, idéias sem valor nenhum como se eu fosse um nada prá você,o que não sei ,na verdade,na triste realidade,que você decididamente não me ama nem me respeita como você fez com todos aqueles homens que você disse ter amado,mas acabou fazendo com eles o mesmo que fez comigo,sendo que você sabe, e nisso apostaria minha vida,que o seu ego é tão absoluto que a sua vontade e desprezo pelos outros, esbarram nessa tua figura narcísica que não te deixa amar ninguém e muito menos respeitar o sentimento dos outros,que infelizmente caem na tua lábia ,na tua rede de mentiras,e como a aranha negra prende em sua teia para depois matar seus sentimentos, fazendo como você fez comigo,me iludindo,me torturando,fazendo-me sofrer simulando sua despedida com um suicídio que eu não acredito,ou tenho medo de acreditar.

(Pedro Luiz Cipolla)

O presente

Finalmente o pai atendera meu pedido que vinha se repetindo vezes e vezes nos últimos dezembros, para ser exato, não dois ou três ou quatro dezembros, mas meia dúzia deles, todos marcados por uma frustração que era preciso esconder, acompanhada de uma certa compaixão que seus olhos tristes me provocavam, a expressão do rosto constrangida, o sincero pedido de desculpas, a voz embargada desejando um feliz natal e um abraço de consolo acompanhado, geralmente, de um pacote pequeno que ele me oferecia, incompatível com o que seria o meu presente dos sonhos, o meu máximo sonho, que agora era trazido diante de mim, muito bem embalado num papel manchado de verde e azul, meio amassado, e que me causou um misto de felicidade e euforia, sentimentos que pude ver, idênticos, na face de meu pai.

(Fátima Neves)

Tudo em vão

Os pescadores mais experientes, costas queimadas do sol, chapéu protegendo a cabeça, mãos escalavradas pelas cordas das redes, acostumados a fartas doses de aguardente ou similares, dizem que no mar, na época da lua cheia, lua boa para se pescar, para forrar o barco de peixes ou então pegar só um, porém enorme, e quando isto acontecer com sua desenvolvida rede, você mais seus colegas de tripulação, pescadores tão experientes quanto você, por sorte conseguir um peixe desses mais graúdos, desses que chegam a pesar perto de 300 quilos, um pouco mais ou um pouco menos, o mar fica revolto com ondas encapeladas e faz com que uma baleia branca venha em direção a vocês e atinja a embarcação, inclinando com ela e logo, seguindo com o mar revolto entrando em redemoinho fazendo com que o barco perca a estabilidade, adernando, começando a afundar e toda a tripulação se amotine, não dando tempo para que haja algum tipo de salvamento.

(José Olavo Crestana)

O Porto das Pérolas é ambiente turístico para famílias se debruçarem no muro com um pau de selfie e conseguirem que o mar dê seu joinha no fundo da imagem, mas nada na minha vida tende para o trivial e lá estou eu, negociando a vida de meu parceiro, preso no porta malas do carro que eu via ser encaçapado pela ponta ridiculamente alta daquela maldita encosta, se não morresse no impacto, morreria sem ar e eu não podia lidar com nada disso, por isso, sinto o tecido grudar em minha pele num toque gelado, a água pulverizada por vermelho me faz compreender a dor aguda em meu ombro, recebo ondas ricocheteadas pelas rodas da BMW se engalfinhando com as pedras profundas e submerjo com apenas um pé de cabra em mãos, sua ponta sinuosa se encaixa na trava, mas a densidade da água me enfraquece, perco posição, repito o processo usando meu corpo feito alavanca e finalmente o vejo, lindo como sempre, desenhando um coração ondulante com as pontas dos dedos encrespados pelo aperto da algema que está afivelada ao automóvel, entrelaço uma última vez nossas bocas para compartilhar o saldo escasso de oxigênio e decretar que seguiremos juntos.

(LeahBHarper)

Obrigado a todas as pessoas que participaram!

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Tales Gubes
Ninho de Escritores

Um olhar não-violento para uma vida mais livre, honesta e conectada. Criador do Ninho de Escritores, da Oficina de Carinho e do Jogo pra Vida.