Galocha Amarela
- Não coloque mais açúcar no café, já está adoçado! Olhe que você fica diabética!
- Amarga, só a vida porque eu não posso adoçar.
“Amarga só a vida…”
Ela nem se lembra mais da primeira vez em que ouviu a frase que faz eco em sua mente desde sempre. A única coisa que se sabe é que sempre que a ouve sente um embrulho no estômago. A ânsia de vômito carrega até a garganta, um líquido imaginário que quase salta pela boca. O líquido não traz aquele gosto azedo, comum a todas as ânsias, ao contrário, ele chega com gosto de chocolate e faz o caminho de volta com sabor de brigadeiro. Faz questão que seja assim, não quer tomar para si aquela amargura. Este amargor é da mãe, não é dela.
Ultimamente deu para retrucar após ouvir a frase:
- Mas a vida é doce!
Silêncio.
Outro dia, enquanto caminhava pelas ruas de seu bairro, parou junto à grade do parque que rodeia o condomínio para sentir o cheiro do mato molhado após a chuva. Havia frestas de terra entre a grama esparsa e aquele marrom molhado lembrou-lhe chocolate. Respirou bem fundo e era como se aqueles fios de terra molhada entre o mato, descesse por sua garganta numa explosão de diversos sabores de chocolate: tradicional, morango, cereja, avelã, beijinho, brigadeiro, pistache, branco, preto, meio-amargo, maracujá, laranja…
Neste momento, um pensamento: e se eu pudesse adoçar a vida?
Tratou de engolir também o pensamento, como se fosse pecado pensar em utopias. Lembrou-se de uma redação feita na adolescência cujo tema era a vida e como dissertara alegremente.
A tinta azul da caneta Bic derramava belas utopias em êxtase e devaneios que mal conseguiam acompanhar o traçado das linhas do papel pautado numa bela simetria.
No dia seguinte, foi duramente criticada por seu professor de Português, não por algum erro gramatical, a escrita estava impecável, mas sim, por ter cometido o pecado da inocência e divagar em utopias sobre a vida que todos negam mas que, ao mesmo tempo, almejam.
Ainda com a frase pulando em sua mente voltou para casa, preparou seu lanche da noite, e, num gesto habitual, para sentir-se acompanhada enquanto comia, ligou a TV.
A cada mordida em seu sanduíche de pão integral com queijo branco, travava a boca com as notícias que desfilavam na tela, só depois conseguia engolir. É, má notícia vende mais e aumenta o ibope, suspirou. As notícias iam desfilando numa espécie de concurso para que enfim, vencesse a pior. Parece que os canais pinçam uma a uma, escolhendo a dedo as piores notícias do dia, ela pensou enquanto sorvia o último gole do café com leite.
Desligou a TV, escovou os dentes e deitou na cama. Não, não ia conseguir ler hoje. A frase que saltara em sua mente na grade do parque ainda sacolejava sua alma.
Dias depois, passava em frente a uma loja de sapatos em um shopping, quando deu de cara com um par de galochas amarelas para adultos. Lembrou-se dos momentos de infância que sempre teve vontade de viver. Era sempre muito comportada, o orgulho da mãe, enquanto olhava aquelas crianças na rua, pulando em poças d’água que se formam após a chuva, aqueles sorrisos marotos que fingem não ver a lama para pintar de marrom as galochas e ver escorrer o ocre em gotas por cima de seus pisantes super protetores ante o olhar misto de raiva e incredulidade dos pais.
Coitados, nem se lembram mais que já usaram da mesma artimanha para sentir o vento gostoso da liberdade e o cheiro do proibido invadir-lhes a narina. Poucas vezes ela deixou-se caminhar fora da margem de sua infância de ares comportados.
Entrou na loja como se estivesse hipnotizada por aquele tom amarelo brilhante, com sabor de infância proibida, pediu o número 36 e saiu feliz com o embrulho na mão.
Na calma solidão de seu apartamento, com a caixa de sapatos aberta em cima da cama, os olhos fixos no amarelo emborrachado, tomou uma decisão: iria dar-se o luxo de caminhar pela margem proibida. Sentiu os lábios se abrirem num sorriso-liberdade.
Guardou a caixa, dormiu.
No dia seguinte fazia um sol de rachar, era uma manhã de sábado. Após o café, vestiu uma blusa branca de mangas curtas e um jeans azul-claro, colocou por cima um sobretudo cinza e olhou longamente para as galochas, calçou-as.
Abriu a porta para a rua enquanto um pensamento acendia sua mente: vou adoçar a vida!