Galochas amarelas

B
Ninho de Escritores
2 min readNov 13, 2020

Da forma como parecia, aquele poderia ter sido o encontro mais banal de todos. Simplesmente não significava nada, acontecendo ali, naquele exato instante, com aquelas exatas pessoas e naquelas exatas circunstâncias. Poderia ter acontecido antes, um milhão de vezes, e ninguém teria notado.

Mas Nicole tinha uma percepção muito própria das coisas. Seus olhos eram como lentes raríssimas que ninguém no mundo parecia ter, ou, ao menos, ninguém até agora. Em geral, quando se encontrava frente a esse tipo de situação, sentia-se sozinha, uma solidão imensa e inexplicável, a solidão que apenas sente quem sabe que presencia algo completamente único. Alguns romantizariam dizendo que essa é a solidão dos sábios ou dos demasiado sensíveis. Mas ela sabia que não era o caso.

O fato de que a maioria das coisas que Nicole via não eram presenciadas por mais ninguém ia além de uma característica única, algo que a fazia especial. Era mais uma espécie de exílio do mundo, exílio de todas as coisas e de todas as pessoas que não fossem ela própria.

Por isso não sentiu necessidade alguma de comprovar que mais alguém havia visto o que ela viu naquela galocha amarela. Sabia que era uma dessas situações em que apenas ela, apenas a lente de seus olhos, captaria. Não precisava certificar-se disso; não precisava de mais uma lembrança de sua inesgotável solidão, de que ninguém no mundo poderia compreender o que ela compreendia, daquela forma tão crua e que alterava completamente o sentido das coisas.

Não havia mais ninguém que poderia olhar para os pés daquela criança, parada em frente à estação de trem, com galochas amarelas, e perceber o que realmente havia acontecido. Ninguém mais poderia enxergar todo o horror que continha ali, naqueles sapatos. De fato, ela sabia que ninguém mais sentia um rasgo dentro do peito ao perceber o que de fato comunicava aquela cor amarela. O amarelo era um disfarce para o sangue, para o sofrimento, para os olhos vermelhos fechando-se em um pedido mudo de socorro. As galochas amarelas que aquela criança calçava não por opção, mas porque o horror era tudo que lhe restava, porque aquelas eram as únicas testemunhas de tudo o que vivera, e vira, e de tudo o que não deveria acontecer para alguém tão novo e tão pequeno.

Mesmo de longe, ela sabia: as galochas eram tamanho 38. E amarelas demais para uma criança; e grandes demais para uma criança; e pesadas demais para uma criança. Elas eram uma prisão, mas também a única chave para libertar-se. Que pena o amarelo ser tão vivo, ou talvez, apenas talvez, algum outro olhar mais atento enxergasse o vermelho que elas carregavam.

Não, aqueles definitivamente não eram os sapatos de uma criança. Nicole sabia pois já os havia calçado, e até hoje não lhe cabiam. Olhou para baixo, para seus pés, e encarou seu par de sapatos amarelos, galochas tão antigas quanto seus pesadelos mais profundos. Suspirou, e retirou-se para dentro de si mesma, de seu exílio, afastando-se da criança, das galochas amarelas, da estação de trem e de tudo que pretendia — precisava — esquecer.

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