Galochas amarelas e não-acasos

Paola
Ninho de Escritores
4 min readNov 15, 2020

Não havia naquela pequena vila, outra alma tão bondosa e materna como a de Dona Bastiana. Não tinha família de sangue próxima, porém sua prole de coração se sentiu órfã quando ela partiu.

Zinho era um deles, chorou a morte de Dona Bastiana como havia chorado a morte de seus pais muitos anos antes.

E lá estava ele, parado em frente ao pequeno portão de madeira musguenta que dava para a horta, de onde emanava uma brisa de capim cidreira e manjericão. Bem ao canto, em um banco de madeira, ainda repousava aquela galocha amarela que se destacava entre o verde. Sempre impecável. Quase brilhante. A senhorinha nunca guardava a bota suja da terra de seu quintal, e todo dia após passar um tempo em sua horta, ela lavava o calçado, secava com uma flanela e o colocava em cima daquele banco, como se fosse um vaso de flores invisíveis.

Ele achava graça nesta mania. Até porque o único propósito daquele calçado era manter a lama longe do assoalho envernizado da casa. E após ser questionada sobre esta rotina, Dona Bastiana respondeu como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.

“Porque ela não vai ser sempre minha, uai.”

Sorriu com a lembrança de como se tornava um menino tolo nestas conversas, geralmente regadas a bolinho de chuva e chá, muitas histórias e conselhos sábios.

“Ocê anda muito sozinho, meu filho… Não vou estar sempre aqui para te alugar os ouvidos. Estes dias mesmo se mudou pra nossa rua uma moça tão bonita, mas também tão sozinha, tadinha.”

Ele sempre ouvia estes lamentos de sua velha guardiã. Ouviu também que um dia tal moça seria convidada para se juntar ao café da tarde com eles. Mas este dia nunca chegou.

O tempo passava lento após o dia fúnebre. Mas Zinho ainda interrompia seu caminho na volta do trabalho, e parava em frente ao velho portão de madeira, como a criança que fora um dia, em um passado remoto. Como se assim, magicamente aquela casa com cheiro de capim cidreira e manjericão voltasse a ter vida.

Curiosamente, ao passar dos dias, notou que a galocha amarela nos fundos do quintal permanecia imutável em meio ao ambiente já empoeirado. Intrigado, continuou observando por mais alguns dias, e assim que uma pequena camada de poeira começava a se acumular, na tarde seguinte o plástico amarelo da galocha estava reluzindo novamente.

Sua vizinha mais observadora — Não queria chamá-la de fofoqueira, já que poderia precisar deste conhecimento universal- jurava que ninguém havia entrado na casa desde o velório e comentou sobre o pouco caso dos parentes distantes. Disse que o Padre da igreja matriz iria benzer a casa vazia de bom grado, mas ela mesma não pisaria lá.

Zinho não acreditava em fantasmas. Mas por via das dúvidas passou a rezar pela alma de Dona Bastiana todas as noites. Porém, não conteve o riso saudoso quando se lembrou de que havia sido ela que lhe ensinara a oração.

Então houve uma noite de tempestade, dessas de verão. E na manhã seguinte, antes de pegar o ônibus para o trabalho, foi até a casa vazia de Dona Bastiana, passando por várias árvores de galhos quebrados pelo vento daquela madrugada, e calçadas enlameadas.

Perdeu todo o sangue do rosto quando se deparou com aquela galocha perfeitamente alinhada em cima do banco de madeira, cuja parede na mesma altura estava salpicada por gotas de lama e a hortinha, coberta pelas folhagens das árvores.

Fez o sinal da cruz e se virou pronto para correr, quando uma voz atrás de si fez gelar suas entranhas mais profundas.

“Então, você deve ser o Zinho?”

Izadora havia se mudado para aquela pequena vila recentemente.

Havia abandonado sua rotina na cidade para recomeçar uma nova vida naquele cenário pacato.

Passou a frequentar a casa da senhorinha todos os dias, após conhecê-la diante da necessidade de uma folhinha de boldo para o estômago. E dia após dia, a observava com admiração e ternura enquanto a senhorinha conversava com seus pés de alface, e como antes de entrar em casa, ela espanava e lustrava suas galochas, que estavam sempre um brinco, como novas.

Depois do enterro, não sabia o que fazer com o vazio que a perda daquela amizade havia deixado, e passou a entrar sorrateiramente na casa da falecida e manter ela mesma, aquelas galochas sempre lustrosas. Isso a ajudava a manter Dona Bastiana sempre presente. Isso a honrava.

Havia conseguido ser bem discreta, até o dia em que encontrou aquele moço pálido feito um fantasma espiando o quintal da casa. Assim que o olhou, pôde saber quem era graças a uma conversa durante um almoço na cozinha de Dona Bastiana.

“Um menino tão bom o Zinho, pena que anda trabalhando tanto lá na cidade que nem vem mais ver essa velha aqui. Um dia eu apresento vocês, você vai ver como é verdade que ele tem um olhinho de cachorro abandonado…”

Ela e Zinho riram muito desta lembrança mais tarde, naquele mesmo dia após a tempestade. Os dois, a partir dali, passaram a fazer companhia para o abandono do outro, e a solidão então mudou de nome.

Semanas depois, Zinho soube que um primo de terceiro grau do qual nem a própria Dona Bastiana devia conhecer, chegaria na próxima semana para dar um destino aos bens deixados. Ele foi de galope até Izadora contar a notícia. E antes de chegar a bater na porta da moça, parou perplexo quando se deparou com galochas amarelas, repousando no capacho da entrada.

Izadora, que já havia se antecipado ao vê-lo pela janela, abriu a porta e o chamou para entrar. Mas foi detida pelo olhar do rapaz, que apontava para o chão enquanto perguntava, sorrindo:

“Por que você tirou as galochas da casa de Dona Bastiana, e as deixou aqui fora?”

Izadora então olhou para seu capacho, e sua alma quase fugiu do corpo.

“Não fui eu”

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