Maragem
O sol queimava forte sua superfície.
O balançar manso das ondas chacoalhava seu corpo para lá e para cá. Como numa leve dança, a água empurrava-a e subia, inclinava e descia, refrescando por ora suas laterais, embora ainda mantivesse sua metade de cima exposta e seca.
Sentia o calor tocar sua semi-circunferência vitral livre e penetrar forte, preenchendo-a de estufa e tingindo de mais amarelo o papel que ela carregava dentro.
Quanto tempo se passara? Não sabia. O tempo e o espaço já não eram linhas. A vida agora era dividida em noites e dias, sol, chuva ou estrelas; ondas revoltas e calmaria.
Certa vez ouviu uma buzina. Longa, inerte. Empolgou-se. Teria sido finalmente vista? A buzina tocou de novo, desta vez mais próxima. O mar se agitou, ondas mais fortes atingiram-na certeira fazendo seu corpo girar. A emoção revirou-a por completo, molhando todo o envolto. Ficou tonta e quente de emoção.
Mas logo o mar se acalmou. O silêncio maroto retornou e o balançar sinuoso leve voltou a ser seu estado de equilíbrio e contemplação.
Marejou. Lágrimas salgadas ebuliram da sua parte externa e evaporaram sem que ninguém as visse.
A esperança esvaía-se. Não sabia onde encontrar o tal Mundo. Foi o que o John disse, depois que soprou para dentro dela o precioso papel.
“Vá e leve esta mensagem para o mundo!”, gritou enquanto a atirava ao longe.
Tinha visto cardumes. Algumas baleias. Até um golfinho. Nunca mais vira um humano sequer, entretanto.
Veio o vento. Veio a chuva. O frio. A lua. Embora as estrelas insistissem em mudar de lugar, o mar ia e vinha, sempre em revolta e largando-a no mesmo marasmo.
O papel ainda estava lá. Intacto. Decerto amarelado, porém nada molhado. A rolha cumpria firme seu prazo.
Haveria tempo hábil para encontrar o tão sonhado Mundo?
Até que o dia cinza chegou.
O céu, mesmo com o sol da manhã, de súbito vestiu-se de um preto fumacento. Racharam trovões e raios, anunciando o caminho da tormenta. O vento soprou vigoroso, o mar agitou-se. A cada nova ondulação sentia o empuxo maior e mais firme. Até que foi empurrada em saltos. Quando deu por si, estava rodopiando. Uma cratera de água foi se formando, sugando-a. Começou a rodar e rodar, a girar cada vez mais rápido, no centro de um vasto redemoinho. Afundava e saía, submergia e retornava em viravoltas, enlouquecidas, com a água gélida percorrendo toda sua superfície.
Os rodopios frenéticos forçavam seu ombro e pescoço. De tão tensa, rachou. E desmaiou.
Acordou com o sol queimando sua superfície. Estava parada. Depois de tanto tempo estava finalmente estática. Exausta.
A água ainda a tocava, mas agora estava deitada num sólido pedregoso. Sentiu o talho doloroso no seu bojo. O papel estava molhado num canto. Algo crepitou. Eles não durariam muito.
Foi quando o sol sumiu, dando lugar à uma sombra de cabelos cacheados.
“Oxi, olha isso aqui, mano!” — o Mundo gritou alto.
Ela abriu um largo sorriso e finalmente partiu.