Meu Amigo Dan

Wallace Martins
Ninho de Escritores
4 min readDec 14, 2016

Eu poderia começar falando algo poético sobre vocação, talento e afins. Mas a verdade é que quando se é um adolescente com poucos amigos e sem jeito para esportes ou outras formas de contato com pessoas, acaba sobrando muito tempo livre.

Foi durante esse tempo livre que resolvi ser escritor. Sempre gostei de ler qualquer coisa que estivesse ao alcance dos meus olhos e ter uma imaginação fértil também ajuda um bocado! Aliando essas duas coisas… o que poderia ser mais instigante do que criar pessoas e fazê-las interagir num mundo ficcional? De todos os caminhos possíveis, esse parecia o mais natural para mim.

Muito bem. Eu sabia o que queria fazer. Já era um grande passo, com exceção de um pequeno detalhe: não tinha a mínima noção de como fazer. Eu era um escritor que não sabia sobre o que escrever. Murchei. Perdi a conta de quantas ideias foram parar na lixeira do computador e na lixeira de casa. Comecei a questionar se a simples vontade de ser ou de fazer alguma coisa era o suficiente. Claro que não era.

Toda vez que alguém me perguntava sobre meus planos para o futuro, a resposta vinha sem titubear: “quero ser escritor”. Até aí, tudo bem. O problema era o que vinha depois: “legal, e você escreve o quê?” Comecei a me sentir pressionado. Todo mundo perguntando coisas como “quando seu livro fica pronto?”; “é drama ou suspense?”; “é sobre a sua vida?”; “me deixa ler um trecho?”…

Então o projeto escritor-de- alguma-coisa- que-ainda- não-sei- o-que- é foi engavetado. E ficou assim por muito tempo até que, ainda nos tempos de escola, Dan apareceu. Ele surgiu durante minhas divagações na aula de matemática e desde então tem me ajudado a enfrentar os períodos de bloqueio criativo e também me distrai quando as coisas ficam difíceis.

Uma ideia de humanas numa aula de exatas

Dan é um personagem sem história que criei enquanto fingia prestar atenção nas explicações sobre equações de segundo grau. Não havia um enredo em torno dele, nem sobrenome ou características físicas definidas. Tudo o que ele tinha era sua personalidade reflexiva e sua visão da vida. Em suma, era um jovem que morria de medo do mundo e de não conseguir encontrar seu lugar nele.

A ideia inicial era só fugir daqueles números todos na lousa, levar minha mente para outro lugar, mas logo me espantei com o leque de possibilidades que se abriu diante de mim. Eu não conseguiria deixá-las de lado. Um personagem desses poderia viver tantas histórias diferentes! Elas brotavam como numa epifania, era muito difícil escolher uma. Não escolhi.

Levei um bom tempo até conseguir colocar um pouco de Dan no papel e assim que fiz isso percebi que, apesar de medroso, era um personagem forte e complexo demais para ser narrado por um terceiro. Eu teria que usar a voz dele. Assim começou esse processo experimental: explorar um personagem que não carregava o peso de fazer parte de uma história maior, que não tinha uma trama definida. Eu podia levá-lo para qualquer lugar e colocá-lo em qualquer situação sem me prender a uma necessidade de coerência entre uma cena e outra ou me preocupar em conduzir a narrativa para um desfecho. Eu só precisava deixar que Dan falasse num fluxo de consciência livre e constante. Cada vez que eu pegava o caderno ou me sentava diante do computador, algo novo surgia, em vez de uma continuação de algo escrito anteriormente.

Paralelamente, retomei minhas tentativas de escrever alguns contos e com elas voltaram os bloqueios criativos. Foi aí que meu amigo fictício começou a me ajudar de verdade. Sempre que a escrita travava, eu encarava a página em branco do Word e me perguntava: “Ok… como foi o dia do Dan hoje?” Não era preciso um conflito, um clímax ou algo do tipo. Era só colocar as palavras para fora e logo a inspiração dava o ar da graça.

Durante anos Dan me ajudou a desenvolver a capacidade de narrar acontecimentos. Passeamos juntos pelo drama, pela comédia, pelo suspense, pelo romance. Chega a ser nostálgico revisitar esses momentos. Não consigo conter o sorriso de canto toda vez que encontro algum texto sobre o tal garoto com medo do mundo perdido no computador ou em cadernos velhos. Mas também me dá um certo orgulho ao ver a evolução, o quanto as poucas lições que pude aprender da vida influenciaram minha forma de escrever.

Atualmente os bloqueios ainda aparecem, mas estão menos frequentes e mais curtos. Além disso, encontrei outras formas de combatê-los. As visitas ao mundo de Dan agora são raras, embora eu ainda me sinta muito apegado a ele. Gosto da ideia de mantê-lo por perto, como alguém que conheço bem e que posso chamar se precisar. No fim das contas, valeu a pena ter perdido a explicação sobre equações. Um escritor não precisa fazer cálculos.

--

--

Wallace Martins
Ninho de Escritores

Escritor, roteirista, professor. Especialista em Teoria da Literatura e Literaturas em Língua inglesa.