Mia e o Mar

Laís Grilletti
Ninho de Escritores
5 min readNov 26, 2020

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Cresceu com os pés na areia. Aprendeu a contar com as conchinhas do mar. Não precisava de muito para fazer uma manhã. Apenas alguns moldes de imaginação e castelinhos de modelar.

As palavras, no entanto, ainda eram bagunçadas no seu falar. Foi peça pregada pelo primo mais velho, quando ela aprendia o beabá. Ele trocou de lugar alguns significados, mas Mia nunca reaprendeu onde cada palavra deveria estar.

Chamava o mar de imensidão, o horizonte de futuro e o céu de infinito.

Sua melhor amiga, sem saber do nome de registro, atendeu por baleia desde o primeiro encontro. Baleia pousava toda manhã na rocha do fim da praia, enquanto Mia conversava com a imensidão, encarando o futuro de frente. Gostava de como o vai-e-vem da água cobria os seus pés.

No povoado em que cresceu, os sonhos eram como as nuvens brancas do futuro. Inalcançáveis. Mia, porém, sonhava de teimosia. Na ausência de bonecas, o faz-de-conta se fazia de areia e sal. Era seu jeito de brincar com o tédio aos domingos.

Mia sonhava em ser capitã da imensidão, liderar tripulações. Ser quem chega gritando na porta de casa depois de pescar o almoço. Não suportava se imaginar do outro lado. De fogo aceso, panela pronta, esperando os pescados de outro alguém.

Mia nasceu para o mar. Mas, no seu povoado, seu lugar estava reservado junto à espera das panelas.

Seu pai, já velho de sol e castigado pelo sal, aconselhava a menina a perseguir sonhos menos cruéis. A ele a imensidão só trouxe lamentações. Perdeu um grande amigo em tempestade traiçoeira, quando Mia ainda era bebê. Desde então, nunca mais admirou o futuro num fim de tarde, como costumava fazer. A imensidão notou seu rancor. Em resposta, os peixes começaram a rarear.

O que era abundância passou a ser escassez.

Apesar dos avisos do pai, Mia pacientizava em segredo. Sabia que um dia teria uma chance de realizar o que sonhava.

No fim de tarde, ela gostava de admirar o futuro, sentada na rocha mais alta, ao lado da amiga. Não entendia por que as baleias, tendo asas para sobrevoar o futuro, voltavam todos os dias à mesma pedra. Não aprendera que até os bichos mais livres desejam encontrar raízes.

Mesmo a imensidão, podendo encostar no futuro e beijar o infinito, sempre voltava com suas ondas de afagar a areia.

Certa manhã, sua chance chegou. Era gripe pesada de colocar seu pai na cama.

Antes da luz nascer, Mia já batia nas portas do povoado, acordando pescadores de todos os endereços para acompanharem sua aventura. Apiedados de seu pai, fizeram da menina, capitã por um dia.

Baleia acompanhou a amiga na viagem, sinalizando onde os pescadores deveriam jogar suas redes. Mas a imensidão não cedeu. Logo que notou seu parentesco, tratou de secar.

As horas investidas trouxeram para casa apenas o suficiente para uma magra refeição. Na porta, exausta e de sonho ferido, um sermão a aguardava. O mar não é de se confiar, Mia. É traiçoeiro, febril, cruel. Só se joga a ele quem não tem nada a perder. Mas você tem. Nenhuma imensidão vale o risco de se afogar.

Mia nada respondeu. Abraçou o pai de olhos chuvosos e entrou para deixar os poucos pescados na cozinha. Não ficaria para o almoço. Retornou à praia. Precisava de uma conversa a sós com a imensidão.

Na beira da areia seca, onde o vai-e-vem não alcançava, Mia transbordou. Gritou para a água os seus sonhos e admiração. Pedia ao futuro que mostrasse em luz e nuvens o que ela enxergava com tamanha nitidez. Ela no leme de um grande navio, navegando em direção ao futuro, para desbravar o que morava do outro lado, onde os olhos não alcançavam.

O mar, ainda reticente, encolhia seu vai-e-vem sem retornar à praia. No vazio da areia, ela avançava um pouco mais. Não se deixou intimidar pela ameaça da ressaca. Lembrou das centenas de cascudinhas que já encaminhou às águas, quando se perdiam do nascedouro ao mar. Apelou para as vezes em que conversavam as três: ela, Baleia e a imensidão, sem ver a hora passar.

Vociferando a ingratidão dolorida, Mia foi afundando na areia, enquanto a água recuava mais e mais.

A um passo do mar aberto, a imensidão retrucou. Engoliu Mia de uma vez. Os pés desagarraram do chão. O mergulho tomou todo o seu ser.

Quando a água era tudo o que existia, Mia abriu os olhos. Lá no fundo, então, a imensidão lhe contou. Falou das redes de arrasto presas aos corais, trancafiando os peixes e retendo a vida marinha em malhas pesadas de náilon. Denunciou desertos marinhos afetados pela pesca predatória. Retorquiou seus argumentos mostrando cemitérios de redes de pesca, carcaças de barcos, linhas e anzóis que sufocavam a vida.

Mia se chocou. Seu sonho nunca foi ser parte dessa brutalidade. Quando o oxigênio já abandonara seus pulmões, um instante antes de ser água, Mia pediu perdão. Desculpou-se pelo sofrimento que seu povoado trouxe à imensidão — e a tudo o que ela protegia.

A imensidão se surpreendeu. Na tentativa de falar de suas dores, não esperava ouvir em resposta o perdão. Em um ato de misericórdia, ela aceitou. Cuspiu Mia na areia para que retornasse ao oxigênio.

Mas a água ainda vertia de seus olhos por outras razões.

Retomando a respiração, Mia secou as lágrimas com as mãos, levantou-se do chão e voltou a caminhar até onde a água quase podia tocá-la.

Em um sussurro que só a imensidão poderia escutar, Mia fez uma promessa. Você não tem motivos para confiar em mim. Mas eu sei que o seu sal corre pelas minhas veias. O futuro é testemunha de que eu serei uma capitã diferente. Em tempos de defeso, não jogarei a minha rede. Se você me der o sinal, não entrarei no mar. Te peço permissão para navegar pelas suas águas, respeitando a vida que você abriga.

As águas aquietaram até o último vai-e-vem. Nem o vento se pronunciou. Por um instante, a praia era só silêncio.

Até que uma onda avistada lá no futuro começou a se formar. Quanto mais se aproximava, mais crescia. Mia temeu por um instante se afogar. Lembrou de seu pai, de Baleia e das razões pelas quais se agarrar. Mas entendeu que aquela era sua prova de confiança.

Fechou os olhos, abriu os braços e respirou, jurando ser essa sua despedida de qualquer oxigênio.

Na iminência do mergulho, a onda suavizou, tocando com gentileza os pés de Mia. Era a imensidão dizendo sim.

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Laís Grilletti
Ninho de Escritores

Escritora e contadora de histórias, autora do livro Minu e a cidade sem tempo. Escreve histórias infantis que, vez ou outra, caem nas mãos dos adultos.