Noivas de uma cena de ação

Tales Gubes
Ninho de Escritores
4 min readOct 24, 2020

Nas últimas semanas, tenho feito propostas de escrita a quem assina a newsletter do Ninho de Escritores. Semana passada, o exercício foi baseado no texto de Tatiane Mateus:

Júlia olhou para o vestido branco. Olhou para o noivo suando lá no altar. Não dava.
Saiu em disparada, pegou o primeiro táxi que apareceu.
- Pra onde moça?
- Para o aeroporto, rápido!
De vestido de noiva, entrou no primeiro avião que conseguiu para São Paulo. Outro táxi, a cidade engarrafada às seis da tarde. Não dava.
- Moço, vou descer aqui.
E saiu desembestada pela Avenida Paulista, uma noiva descabelada, a maquiagem borrada.
Chegou no prédio, o porteiro olhando incrédulo. Esse elevador não chega!
Parou em frente à porta conhecida. Do outro lado, Leonardo.
- Não deu. Era você.
Ele a envolveu nos braços e a beijou.

Convidei assinantes da newsletter a escrever um momento de até 100 palavras em que alguém vê Júlia passando vestida de noiva.

Seguem os textos que recebi como resultado desta provocação.

Era inútil. Tenho tentado de tantas formas que já pareço uma adolescente desesperada. Mas acho que isso é realmente o que sou. O desespero também é inútil. Perdi a mão, não consigo desenhar nem um corpo direito, isso quando tenho uma ideia decente. Mas já chega. Estou tentando aprender a semanas e nada. Largo o lápis em cima da mesa e respiro fundo enquanto cubro meus olhos com as mãos. Tanto tempo jogado fora… Olho pra janela e… congelo, porque tem um noiva correndo na rua, ela parece desesperada, mas… está indo atrás de alguma coisa. Pego o lápis novamente.

(Fernanda Gonçalves)

Apaixonada! Era assim que me sentia. A vida, enfim, era minha amiga. Só de pensar, sorria andando pela rua.

Nesse contexto mágico pude ver uma noiva adentrar correndo pelo meu prédio. Com vestido e véu!

No elevador, equilibrando a garrafa de vinho, enquanto pegava a chave da minha nova casa, pensei no que nós dois juntos riríamos quando contasse o que tinha visto. Seria uma noite boa, como vinham sendo as anteriores. Continuei sorrindo.

Chegando ao andar, quase pisei na calda e acompanhando-a até o corpo que a sustentava, não pude acreditar, era o meu Leo nos braços da noiva.

(Evelyn Gasparetto)

Cezar lembrou da filha quando viu a noiva entrar no prédio. Sentiu um aperto no coração, não o primeiro do dia, ao pensar que não estaria no casamento da própria filha. Fim de semana, não podia faltar o trabalho. De qualquer forma, não via a filha há tempo demais.
O celular tocou.
— Pai…
A sensação no peito aumentou, quente, ao ouvir a voz da filha, chorosa. Claro que ele ia. O orgulho já tinha tirado coisas demais dele.
O ônibus passou vazio. Puxou papo com o cobrador, com o motorista, com a velha ao seu lado.
Sorte. Não fosse por isso, ninguém teria prestado atenção nele quando seu coração infartou.

(Nicole Britto)

Eram exatamente dezenove horas, o sino da matriz tocava estrondosamente, anunciando a toda a vizinhança que naquele momento haveria uma cerimonia extraordinária na igreja, depois de cessadas as duras badaladas e um vago silêncio, ouviu-se o barulho de um tiro seguido de mais um, que ficou ecoando por segundos, deixando todos estarrecidos quando a figura branca de Júlia pareceu na entrada do santuário, descendo a escadaria pulando de dois degraus, em seu vestido de noiva aprecia uma mancha vermelha bem a altura do abdome, escorrendo por todo o resto do seu corpo até chegar ao seus pés. Júlia cambaleava tentando respirar. Lá dentro estava o corpo inerte de Leonardo esticado no chão em frente do altar, e diante da estátua de Jesus pregado na cruz com os braços abertos. Seu paletó preto novinho recém comprado por cima da camisa branca de seda, certamente não serviriam para o funeral. Possivelmente seus sapatos pretos brilhando mais do que catarro na parede. Sua vida se fora… Júlia era socorrida no meio da rua por transeuntes, todos embasbacados, desiludidos com a arte de amar.

(Socorro Freire)

O porteiro estava atrás do balcão de entrada do prédio, apoiando a cabeça entre as mãos. Tinha o olhar concentrado, mirando o horizonte, quando foi interrompido.

- Bom dia, seu Sérgio!

- Dia, dona Cleide!

- Que houve? Que cara é essa?

- A senhora não vai acreditar. Uma mulher vestida de noiva entrou correndo e me perguntou se o doutor Leonardo do 402 tava em casa. Eu disse que sim e ela subiu apressada. Eu tava aqui pensando: se ela tivesse chegado dez minutos antes, ia dar de cara com outra.

- É, meu filho, as capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão.

(Suzane Silveira)

Estes foram os textos recebidos nesta semana.

Obrigado pela leitura!

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Tales Gubes
Ninho de Escritores

Um olhar não-violento para uma vida mais livre, honesta e conectada. Criador do Ninho de Escritores, da Oficina de Carinho e do Jogo pra Vida.