O canto da rua

Tiago Zarowny
Ninho de Escritores
4 min readMay 17, 2021
Ilustração de ambiente urbando onde uma porção de casas está rodeada de vários prédios enormes. Acima está o céu, abaixo estão labaredas de fogo. Ao centro duas ruas vão até ao horizonte. No centro há também uma castanheira enorme, do mesmo tamanho dos prédios
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Morava na rua do sufoco. Uma rua sem saída num canto da cidade, que era canto, mas também não era tanto assim, duas quadras em qualquer direção e se encontrava uma infinidade de prédios. Era como um bolsão de vácuo no meio de uma cidade onde o ar estava sempre sendo invadido por alguma matéria não pertencente daquele espaço. E o ar, deslocado de onde deveria estar, ocupava outros espaços, naturalmente aquela área de 250000m² deveria ser um bom lugar, já que oferecia espaço suficiente pra vida acontecer sem malabarismo. Mas o que acontecia era o inverso, tudo aquilo que não presta ocupava aquele espaço, a vida acontecia na maior artificialidade possível. O ar fugia, o calor reinava, a poluição sonora e atmosférica se intensificava. O fogo surgia de qualquer esquina, volta e meia sapecando um transeunte que passasse por perto de bueiros selvagens. O subsolo do lugar deveria ser o inferno, mas ninguém teve coragem de ir lá olhar.

A rua do sufoco, paralela da rua da desolação, ambas sem saída, se cruzavam com a rua da esperança e também com a rua do direito, essas eram intermináveis, iam infinitamente até os confins da terra e se encontravam com todo outro tipo de rua. Algum dia deveriam parar em alguma praia ou montanha excessivamente íngreme, mas ninguém teve coragem de ir até o fim.

Eram nove quadras, aparentemente livres do caos do resto da cidade, mas efetivamente eram atingidas por todo tipo de perturbação. Havia quem dizia que foi aqui que Jesus morreu, e por isso era proibido construir qualquer coisa que atingisse a altura que Jesus alcançou ao subir aos céus. História de maluco, certamente, tem muito maluco por aqui. Aqueles que não são malucos, beiram a maluquice, e esses dizem que Jesus nasceu pra lá do fim da rua esperança, e morreu por lá também. E que não havia prédios por lá naquela época. E depois, quando se pôde construir prédios, proibiu-se, sabe-se lá por quê. Vai que foi pra não alcançarem a altura de Jesus.

Como há muita gente miserável por aqui, população de rua, fugida das áreas dos prédios, a gente sempre usa a imagem de Jesus pra falar qualquer coisa. Qualquer um que nos pede ajuda pode ser Jesus voltando e testando a nossa fé. O fogo do bueiro pode ser o fogo do inferno. O fogo que se acende em um barril em dias de frio pode ser um pedaço do inferno, e a comida que se dá a quem precisa pode ser um pedaço do céu.

Aqui é de fato uma terra intermediária, tem um pouco de tudo. Essa terra tem um nome, os estudados sabem. Eu chamo de rua do sufoco. Elas estão por todo lado. Ruas sem saída, repletas de pedaços de inferno, combatidos com fagulhas de céu e figuras incertas de Jesus. A algumas quadras da esculhambação completa. Ruas recebedoras das mazelas da humanidade. E por isso também elas são de uma riqueza que nenhum outro lugar guarda.

Há por aqui um bocado de gente, maluca, sem dúvida, mas quem não é maluco hoje em dia? Há um senhorzinho, nos idos dos seus oitenta anos, de nome José Aurelio. Se esse é o nome dele, ninguém sabe, o chamam assim porque ele chegou sendo o seu Zé, e depois passou a andar com um dicionário debaixo do braço. Aurélio nos ensina qualquer coisa tirada de qualquer página de seu dicionário a todo momento que tudo fica em excessivo silêncio. Diz ele que já estudou muito muitas coisas do mundo, mas por fim o destino o trouxe até aqui. O acaso lhe ofereceu um dicionário e também a cumplicidade de algumas outras almas miseráveis. Com isso, ele vive do dicionário e das migalhas de amizade que conseguimos nos oferecer uns aos outros. De fato todos moramos juntos, mas não moramos em lugar algum. Um dia alguém vai embora e nunca mais volta, outros vão ficando e as pessoas vão se renovando como se nada houvesse. Mas há. É a força da rua do sufoco. A gente vai embora em busca de oxigênio. E deixa pra trás mais coisas do que gostaria de deixar.

Zé Aurelio um dia escreveu numa das paredes do abrigo onde sobrevivíamos usando um pedaço de carvão surrupiado de uma fogueira qualquer: “Sufoco: s.m. Ato ou efeito de sufocar; Situação muito difícil, dificuldade, aperto; Angústia, ansiedade.”. Foi o que ele deixou gravado quem sabe pra se imortalizar nas paredes do nosso canto que não era canto nenhum. Era grito, era desespero. Mas canto não era.

A gente sufocava e havia ar suficiente, mas ainda sufocávamos. Devia ser a cidade logo ali, nos apertando pelos lados, o inferno nos apertando de baixo pra cima, e o céu nos apertando de cima pra baixo. No espaço se sufocava, no mar se sufocava, até engasgado com o próprio vômito se sufoca. Arcadiano gritava, amarrado em baixo de uma castanheira por problemas comunitários, dizia ele que prá lá do fim da rua da liberdade, lá não se sufoca. Quem sabe seja lá o céu. Mas ninguém deu ouvidos nem teve coragem de ir até lá olhar. Quem sabe Zé Aurelio tenha ido.

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