O executor

Lauro de Camargo Neto
Ninho de Escritores
3 min readFeb 9, 2021

Observo-a deitada na cama. Estática, pálida e fraca, como a maioria deles quando sou convocado para visitá-los. Do canto do quarto, espero o momento certo para fazer meu trabalho. Não me é permitido questionamentos. Recebo nome, local e hora, vou até lá e executo a ordem. Não encontro outros como eu, mas sei que eles existem. Afinal, seria impossível cuidar de tudo sozinho.

Ela se mexe, deitando-se com o rosto para cima. Agora, a parca luz branca do quarto mostra com mais clareza seus traços finos, uma beleza quase angelical. Não mais me parece fraca, apenas frágil. Ela não me parece doente.

Lentamente me aproximo da cama enquanto abaixo o capuz negro. Por algum motivo, ela chama minha atenção. Há algum tempo me pergunto como os mortais são selecionados. Por que eles devem morrer? Não entendo quais são os critérios do departamento. “Cada um deve ir no momento certo, definido por suas ações e por sua função na terra”, eles dizem “só faça sua parte”. E quem, ou o que, determina o momento certo? E se eles estiverem errados, e se não for o momento certo?

Uma enfermeira passa checando os pacientes, um a um, observando seus sinais vitais e as máquinas que os monitoram. Ao chegar na minha mortal, enquanto checa a sua planilha, aumenta a dose do medicamento no momento exato que as máquinas apitam no outro canto do quarto. Ela sai correndo para ver o que estava acontecendo com outro paciente e, nesse movimento, seu dedo escapa e deixa a dose do alta demais.

Claro, não foi um acidente. Foi arquitetado para isso acontecer, obra de alguém do departamento. Queria dizer a enfermeira que é inútil, que não é a hora dele, mas dela. É aqui que ela deveria estar, é aqui que ela deveria prestar atenção.

Malditos humanos. Cegos a tudo que não está bem na sua frente.

Sua respiração começa a ficar mais lenta, afetada pela droga. Por que ela deve ir? Se ela soubesse que estaria aqui, hoje, teria feito algo diferente? Teria tentado evitar? Ela não parece ser alguém que está à beira da morte. O que será que o departamento faria se eu não a levasse? Logo chegará o momento de vários outros daqui, será que alguém perceberia se eu adiantasse um pouco a morte de um, levando-o em seu lugar? Mas o que aconteceria com ela depois? Comigo? Provavelmente eu seria “aposentado compulsoriamente”.

— Não me parece uma ideia tão ruim. Penso em voz alta e dou uma leve risada abafada.

Logo afasto esse pensamento. Não posso pensar nisso. Não posso me conectar com os mortais, não é assim que funciona. Não sou eu quem julga, sou só uma peça nessa máquina, alheio a muito do que se passa. Apenas mais um executor. Mas tem algo nessa humana…

Meu instinto chama. Faltam 10 segundos.

Alcanço o pequeno recipiente de vidro dentro do meu manto. Calmamente, retiro sua tampa de cortiça e encosto meus dedos finos e gelados em sua testa. Ela olha diretamente para meu rosto vazio, dá um leve sorriso e deixa escapar uma lágrima enquanto lentamente sua alma sai do corpo e entra no frasco que será levado para o outro lado. Sinto um arrepio percorrer minha espinha. Fecho o frasco.

A máquina apita. A enfermeira grita por ajuda. Em vão.

Fico estático ao lado da cama. Ela conseguia me ver. Ela sabia que eu estava ali, desde o começo! Apenas agora, depois de ter vagado por quase todos os confins da terra nas últimas centenas de anos, entendo o que é se sentir solitário. Apenas agora, vendo dentro desse pequeno frasco essa alma verde azulada, sinto que fui visto por alguém. Sinto que existo.

E se eu colocá-la de volta?

Photo by Rodion Kutsaev on Unsplash

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Lauro de Camargo Neto
Ninho de Escritores

Pesquisador, ambientalista, indignado com o capitalismo. Correndo, lendo, nerdiando e escrevendo na busca de estar, não ser, feliz.