O mais perto que se pode tocar do céu

LeahBHarper
Ninho de Escritores
5 min readNov 18, 2020

O que é perfeição para você?

Eu diria que perfeição é algo como o alongamento da aula de teatro. Quando te pedem para tentar tocar as estrelas do céu, se esticar todinho, nas pontinhas dos pés. Almejar o inalcançável.

E como mangas que perdem o vínculo com o galho cedo demais, as pessoas vão desistindo fácil, uma a uma. Mas não eu. Eu estava mesmo disposta a chegar o mais perto possível do céu.

Fiz o meu dever de casa. Fiz tudo o que me disseram pra fazer; Ter modos de uma moça, mastigar cem vezes alimentos sólidos, fazer listas, estudar até altas horas, não choramingar por cólica menstrual, ser a primeira da turma, ficar em casa com meus pais, não me distrair com festas, passar no vestibular, não me envolver com garotos, ser a queridinha da coordenadora (se preciso recolher seu lixo), me formar, ter um emprego que pague as contas, sair imediatamente da casa dos meus pais, arrumar um marido bem sucedido (podre de rico), parecer sempre feliz, fazer tortas aos domingos para a família dele — que me odeia, compartilhar conquistas nas redes sociais, jamais mencionar o abandono do meu pai alcoólatra, conquistar mais coisas para compartilhar, beber dois litros de água por dia, me manter magra acima de tudo, casar numa igreja grande usando um vestido pequeno e ignorando o fato de que minha mãe foi velada bem ali, não enlouquecer no processo do casamento, ter um filho incrível.

Eu fiz tudo o que me mandaram. Fiz tim-tim por tim-tim e eu era eficiente no processo de ser eficiente. Me inspirava no sucesso passado, e fazia da idade um benefício de superação constante.

Mas a verdade é que eu estava infeliz como um patinho preso à um lago lodoso de água sem movimento, cujos amigos patos morreram e agora só me restava torcer para que algum protetor de animais, se canse dos cães perdidos e me resgate.

E foi bem ali, naquele parque feio ouvindo o patinho cinza que parecia ter crescido e se adaptado ao ambiente tóxico, que todas as minhas conquistas caíram feito um caracol de dominós.

Um bandido que havia acabado de cometer o crime mais idiota de todos — roubar uma caixa de revistas pornô da banca — envolvido no seu fugir desesperado, me acertou direto no olho esquerdo, me fazendo mergulhar nos poucos centímetros de água verde empapada com grãos de bico e coisas brancas flutuantes.

Eu tinha um ótimo palavrão engatilhado na boca, mas sabia que se separasse os lábios, ficaria sem comer por uma semana. Por isso, apenas me levantei e continuei a caminhar para o trabalho, onde todos me olharam como se eu fosse um gambá irritado.

Arthur, o meu chefe que vivia dizendo que sou como uma filha, estava pessoalmente irritado nesse dia. Eu acho que foi algo com a mulher dele, algo como um cartão esgotado e limites novos. Arthur gritou comigo e disse que estava ansioso por um motivo para me mandar embora, porque eu já tinha dado o que tinha que dar, como um ratinho de laboratório.

Trotando como um mangalarga marchador, corri para casa a pé, depois de ser recusada por vários taxistas surpreendentemente preocupados com a higiene do veículo, e de é claro, ter voltado a pracinha e libertado aquele pobre coitado do pato cinza.

Chegar em casa mais cedo e poder tomar um banho quente, tinha tudo para ser a parte alta do meu dia. Exceto pelo fato de que meu querido marido Rafael, estava no chuveiro com a Ane, que costumava ser minha melhor amiga. Ela literalmente enfiava os dedos no meu cabelo para massagear óleo de coco e acelerar o crescimento, Ane que depois os segurou no meu primeiro porre. Ane estava sempre por perto e só agora eu podia perceber que… Ane estava perto demais.

Sem marido rico, sem casa e sem emprego, sem melhor amiga Ane, sem um pai alcóolatra e sem minha mãe em constante depressão, eu me vi solitária e fria como uma noite de inverno.

Eu podia ser resumida em uma palavra.

Torpor.

Com meu mecanismo de defesa perfeito ativado, eu ignorava a dor e ignorava o fato de que a estava ignorando deliberadamente. E se eu não pensasse nos meus fracassos, eles perdiam poder sobre mim, sem notar que, quanto menos pensava, menos eu existia.

Não seria exagero dizer que saí andando por aí, feito um nômade ou um viciado, sem saber para onde ir ou como achar o caminho. A minha única sorte é que era natal, e por isso não era difícil encontrar luzes coloridas pelas ruas e as fazer de guia.

No meio do parque, havia uma árvore. Os galhos retorcidos pareciam exaustos daquele passo de dança. Luzes amarelas brilhavam como estrelas espaçadas pelos longos tentáculos marrom e verde.

Eu estiquei o braço e fiquei nas pontinhas dos pés, quase gritei de euforia quando senti algo tangível fazer cócegas nos meus dedos. Num pulinho rápido e certeiro, apanhei uma estrela. E só então descobri que não era apenas uma estrela.

Era uma carta. Papel timbrado com o nome de um orfanato. Desenhos de gorro de natal e biscoitos de gengibre margeavam a letra infantil que certamente não ligava para a própria caligrafia. Era tortinha e mais gorda do que deveria, e eu me apaixonei pela falta de senso, pela falta de destreza, era imperfeito e crível, tão real como se aquela criança do outro lado do papel segurasse meus dedos e os apertasse até eu sentir dor e berrar um estalado AI!

A cartinha não queria uma bicicleta, nem um trenzinho a vapor. Não era nada como um filhote de cão ou um pônei cor de rosa. Nem mesmo era um algodão doce. Ela só queria… advinha só? Um par de galochas amarelas. Estava desenhado bem abaixo do “será que o nome disso é botas?” e foi quando dei para ela um par de galochas amarelas e uma família que percebi finalmente que eu não havia tocado uma estrela, mas o universo inteiro.

--

--