O passado Perdido nas Memórias

Mateus Silva
Ninho de Escritores
3 min readMar 23, 2021

Quando vi a alegria abençoando as feições de duas crianças sob a chuva, me perguntei:

“Quando o passado se perdeu no tempo e nas memórias, o que me restou?”

Fechei meus olhos, cansados de tanto ter visto, e debrucei-me em memórias. Lembrei das estrelas sobre o céu noturno de verão. Das andorinhas levantando voo rumo ao seu lar de galhos e folhas. Das ondas do mar balançando tão calmas quanto a paz mais profunda que se consegue alcançar. Do galopar de um cavalo alazão, carregando em si, a mulher mais linda que já viveu neste pequeno planeta; seus cabelos dançavam ao ritmo do vento.

A sorte abençoou minha visão com essas imagens de puro deleite. Mas estavam incompletas.

Ainda de olhos fechados e a cadeira a balançar, arrependimentos invadem-me tal qual um cavalo de troia. Percebi tarde demais que escolhi o caminho errado. Tornei-me uma máquina onde cada miserável peça, do menor parafuso à maior engrenagem, trabalhavam em uníssono rumo àquele verbo que governa nossas vidas como um ditador.

“Produzir! Produzir! Produzir!”

Eu só queria viver bem e proporcioná-lo a quem me importava. Mas confundi os caminhos. Na verdade, se me permite uma autodefesa, fui ludibriado por ideias que confundem a realidade pura. Por discursos que se apropriam de uma angústia desesperadora e tornam-na instrumento produtivo. Fiquei encantado com todas as mentiras, pois encheram meu coração de esperanças. Alcançaram minha alma e tornaram-na, assim como meu corpo, uma máquina.

E, como um cachorrinho adestrado, que recebe um pequeno petisco após acatar fielmente as ordens de seu adestrador, eu obedecia aos meus, enquanto eles, os senhores da produção, guardavam para si todo o saco de ração.

Esqueci completamente daquilo que importava: de viver cada momento, de apreciar cada instante. Cada estrela cintilando sobre o céu. Cada andorinha pousando sobre os galhos de uma árvore. Cada onda do mar. Cada sorriso de minha amada sobre o galopar do alazão.

Não me significavam nada, além de pura beleza, mas esta procura apenas os olhares, iluminando as salas escuras, preenchendo cada canto ou frestas. Fisgando e enganando até o mais distraído dos mortais. Mas não clareia a alma que suplica por conteúdo, substância, essência.

Não pude amar verdadeiramente, pois um prisioneiro não ama sua cela. Estava preso às minhas preocupações. E uma pessoa verdadeiramente livre é aquela que não precisa se preocupar. Contudo, tal tranquilidade da alma só é possível àqueles que estão mortos.

Não me restava mais nada, além dessa cadeira e de um quarto pequeno; de tanto produzir acabei fabricando a solidão. Sou agora uma máquina com a bateria gasta. Tudo que me resta é o cintilar da última faísca.

Abri os olhos, e após ver as crianças sorrindo e dançando sob a chuva, percebi que naquele momento eu estava livre. Que finalmente havia alcançado a tão desejada liberdade.

“Ainda há tempo.”

E foi quando parei de balançar. Quando levantei, não com a agilidade dos jovens, mas com a vontade deles. Desci pelas escadas escorregadias em direção à chuva. Olhei para trás por um instante, e vi meu corpo na cadeira.

“Quando o passado se perdeu no tempo e nas memórias, o que me restou?”

E, enquanto apreciava tudo ao meu redor com um sorriso, não em meu rosto, mas em minha alma, surge a mim uma resposta definitiva:

“Eu!”

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