Lendas Urbanas — O presente

Izabella Cristo
Ninho de Escritores
2 min readOct 10, 2020

Entrou pela janela.

Não era toda casa que tinha uma chaminé.

Chaminé mesmo era coisa de casa de rico. Casa de quem tem neve. De quem vive leve. De quem tem sala que se preze.

Havia muita gente que no inverno passava frio.

Entrou pela janela do barraco de madeira.

Não era toda parede que era feita de tijolo. Nem toda casa era cimento, concreto ou mesmo forro.

Alvenaria era coisa de ouro para quem mora no morro.

Entrou pela janela, pisou no chão úmido sem nenhuma bota preta.

Nem todo piso era de azulejo.

Nem toda a casa tinha telhas para proteger das goteiras.

Se tivesse uma laje que cobrisse do sol já era sombra e vida fresca.

Entrou pela janela, naquele calor, sem rena, sem barba, sem roupa vermelha.

Entrou mansinho, na manha, com o que deu na telha.

Foi lá cumprir a missão que a vida lhe dera.

Entrou pela janela e na sala não tinha árvore.

Não tinha sala. Era uma só parte.

Não são todas as casas feitas de pluma. Algumas cabem muitas brumas, dentro do sol ou das luzes da rua.

Essa casa, sem parede, sem chão, sem telha, poderia até ser toda destrambelha, mas ele entrou, porque sentia que lá havia uma estrela.

Nem todos tinham uma casa. Muitos podiam ter grandes sacadas, mas não era aquilo bastava para chamarem um canto redondo de lar.

Pisou manso, de resvalo, quase mudo. Deixara de fora os sapatos, a soberba ou qualquer orgulho, porque descalço parecia mais fácil pisar nas poças e evitar os calos do mundo.

Entrou, então, a procurar a meia.

Logo a encontrou, pendurada na cabeceira, onde dormiam duas crianças e o casal agarrado até as pampas.

Apesar do calor e de toda lambança de peles, não há sujeito que se negue a agarrar o verdadeiro amor de feitiço.

Tentou na surdina, não fazer muito rebuliço, pois até o farfalhar do embrulho poderia acabar com compromisso daquele belo sono de amor noturno.

Pegou a meia. Observou que estava furada.

Porque nem todos tem a honra de ter uma meia que não esteja rasgada.

E isso não quer dizer nada.

Deixou o presente ali no lado da cama, com a certeza de quem só quem muito ama e tem fé o espera tanto numa véspera.

Ele sempre preenchia meias descobertas, meias volumosas, meias incertas.

Mas aquela era uma meia especial.

Uma meia furada de natal.

Trazia a luz que só Jesus faz, afinal.

O que o homem faz com a faísca de luz, no que transforma da vida e de suas metas, não poderia prever.

O futuro sempre é uma névoa incerta.

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Izabella Cristo
Ninho de Escritores

Me Escondo Aqui. Escritora✒️, Cirurgiã🔪Mãe👻,em relacionamento sério com as palavras. Livros: Vida Nada Moderna, Retratos da quarentena. www.izabellacristo.com