O que há através do sorriso de minha mãe?

Lilian Freitas
Ninho de Escritores
6 min readMar 9, 2021

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Eu estava descendo a mata, acompanhando o percurso do rio e vi algo brilhante na água. — Curioso! O que será? Aquele brilho me remeteu a infância. Brincando na banheira com os brincos de pérola da mamãe. O sol que entrava pelo basculante do banheiro iluminava a água ao meu redor e os brincos de pérola chamavam minha atenção, mas nada brilhava mais do que o sorriso dela. Naquele tempo, ainda jovem. Sempre feliz, curiosa, questionadora, cantarolando pela vida e sorrindo para mim. Ah, se ela soubesse o quanto o sorriso dela ainda ilumina meu coração e traz fôlego a minha alma! As vezes tudo o que eu quero é só poder voltar para aquele colo, aquele sorriso, aquele perfume, aquele amor de minha mãe… aquela lembrança, tomando banho e banhando minha alma no seu sorriso, no ritmo de sua voz. Hoje busco esse sorriso e me pergunto onde será que ele está. Será que por trás desse rosto inexpressivo ainda existe aquele olhar, aquele sorriso feliz, inebriante? Pergunta sem resposta, como esse olhar, já sem perguntas.

Meus irmãos acreditam em tudo que os médicos dizem e esses insistem em não oferecer esperanças. Mamãe acreditava até em E.T.s e nunca perdeu a esperança de que conheceria um pessoalmente. Lembro o dia em que ela nos contou como foi a primeira vez que viu um, e no auge de sua história faltou energia. Estávamos na casa de campo do vovô, longe das luzes da cidade. Passamos o resto da noite no jardim, correndo de braços abertos e cabeças erguidas, olhando para o céu à procura da estrela mais brilhante e quem sabe até uma estrela cadente para fazermos um pedido mágico. Ou ainda mais, quem sabe teríamos a sorte de encontrar algum E.T. chegando para visitar nosso planeta. Mamãe sempre teve o poder de nos contagiar e envolver nos seus sonhos. Para mim, mais parecia vinda ela própria de outro planeta, diretamente para habitar o meu mundo particular. Para os defensores do “mundo real”, eram apenas fantasias, “utopias inúteis”, eles diziam. Ainda não consigo entender como alguém pode atribuir à utopia essa característica, inútil. Gostaria eu de ter em mim todas as “utopias inúteis” de Santos Dummont. Sonhar o inimaginável, sentir e desejar tanto, trabalhar e se empenhar tanto por isso ao ponto de conseguir torná-lo concreto, palpável.

Eu nunca fui muito simpático à realidade. Gostaria mesmo de ter sido Peter Pan, uma criança eterna. Para não precisar viver a vida adulta como ela é. O que será que Pan diria da nossa vida dos adultos hoje? Pan visitava o mundo real para buscar meninos perdidos para a Terra do Nunca. Será que se Pan existisse de verdade ele levaria as crianças que vivem na rua para morar com ele em algum país rico? Dizem que a vida nos países ricos é muito melhor, avançada. Mas sei que lá há analfabetos e gente que não tem casa, gente que não pode entrar e gente que não tem como ficar, gente que não tem o que comer. Outro dia li em uma reportagem que analfabetos não existem em Cuba e que mesmo no interior, a população sabe ler, escrever, não morre de fome ou sede, não mora na rua e sabe até política. Coisa muito séria é política, dizia mamãe. Será que para o “Peter Pan real” essa seria a Terra do Nunca, ou o outro planeta habitado pelos E.T.s que mamãe tanto falava? Acho que mamãe daria um sorriso iluminado para mim outra vez, se eu fosse Peter Pan e transformasse o mundo em uma Terra do Sempre, para os habitantes de todo o nosso planeta. Eu ainda deixaria uns espaços para os ETs se hospedarem quando viessem nos visitar.

Quando eu soube que não restava muito tempo para que o sorriso de mamãe fosse apagado do seu rosto eu resolvi subir novamente, mas sozinho a floresta que fica próxima a casa de campo do vovô. Todo ano nas férias de verão fazíamos esse passeio com mamãe. Era emocionante! Nos sentíamos verdadeiros desbravadores. O percurso era sempre o mesmo, mas havia algo de diferente a cada vez. Não sei o que era! Talvez fossem plantas novas pelo caminho, ou lugares em que a erosão tinha avançado ou recuado, ou talvez fossem só as flores ao redor das margens do rio… Será? Não sei dizer o que era, mas a cada vez parecia ser um novo passeio, diferente. Mamãe dizia que em dia de passeio a obrigação era se divertir. Na trilha, quando passávamos pela rocha grande com uma gruta ao lado, mamãe começava a cantar. Todos nós a acompanhávamos. Meus irmãos se animavam, corriam, pulavam nos refrãos e parecia que a festa havia começado de verdade. Eu perguntava a mamãe porque só cantávamos ao chegar naquele ponto. Ela respondia que ali era um lugar especial. Com o tempo percebi que pouco antes da gruta, havia uma placa indicando a possibilidade de animais peçonhentos. Depois ouvi nas aulas de ciências da escola que barulho espanta os animais na floresta, então passei a desconfiar que ela queria que cantássemos para o barulho ajudar a espantar os animais do caminho. Aqueles passeios eram os melhores, voltávamos cheios de histórias e o sentimento de termos percorrido o mundo. No fundo, acho que a diferença não estava tanto na paisagem ao redor, mas na gente. Estávamos crescendo! Cada vez que passávamos por ali nós éramos capazes de observar mais coisas ou até as mesmas coisas, mas de outra maneira, como no dia em que reparei a placa alertando para o perigo no caminho e suspeitei da estratégia de mamãe.

Será que a gente cresce e a vida muda tanto assim? Ou os desafios continuam sendo bem parecidos e a gente é que aprende a perceber mais detalhes ou perceber de outra maneira? O meu frio na barriga, seja de felicidade ou de medo, continua sendo igual ao que eu sentia quando mamãe ainda podia me pegar no colo. Aliás, quando meu casamento acabou eu saí feito um menino e fui deitar minha cabeça no colo dela. Exatamente como fiz quando aos 8 anos nos mudamos de bairro e eu descobri que teria que mudar de escola também. Hoje, quando brinco com meu filho sinto que ele consegue encontrar dentro de mim o menino que um dia fui e hoje se esconde debaixo da minha barba, brincando de fingir ser um adulto. Como é difícil escapar da curiosidade desse menino dentro de mim!

Eu, curioso como minha mãe, não resisti e entrei no rio atrás de descobrir o que havia ali que brilhava tanto. Era uma garrafa de vinho. Vazia. Sem o conteúdo que em algum momento por certo embalou o riso ou aconchegou a tristeza de alguém. Lembrei-me de mamãe…. Resolvi guardar um pouco da água do rio naquela garrafa e levar de presente, mesmo sabendo que ela já não lembrava daquele rio, dos nossos passeios na floresta ou mesmo de mim. Hesitei! Meus irmãos me achariam tolo. Eu me senti tolo imaginando o olhar indiferente dela com o meu gesto. Levei a garrafa cheia comigo mesmo assim e coloquei ao lado da cabeceira dela, que nem mesmo virou-se para olhar. Sentei aos pés da cama e contei nossas histórias na floresta por horas, até que ela adormeceu. Na manhã seguinte mamãe já não estava mais lá. Foi o meu último presente. Senti-me tolo por ter pensado em não presenteá-la por receio de ser tolo. Senti que era minha alma que precisava se harmonizar com aquele gesto que talvez pudesse até ser tolo, mas apesar de singelo era amoroso. Aquela garrafa com água do nosso rio, regada noite a fora com as nossas histórias foi muito mais um presente que dei a minha própria alma do que a minha querida mãe. Foi o meu adeus ao que os olhos não mais poderiam ver e a minha redenção para finalmente ser inteiro, inseparável, fundido mais do que nunca com ela, que agora vive em paz a cantarolar dentro de mim.

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