Os sem-nome

Corpo de Palavra
Ninho de Escritores

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Às 23 horas daquele sábado frio e chuvoso ele saía da casa de Helena. A pobre coitada disse que ele era um zé ninguém, que não o suportava mais e que da vida já bastava viver.

Ele, que havia permanecido o tempo todo em silêncio, virou as costas e, num estado quase hipnótico, percorreu aquelas ruas sem vida cujas luzes e névoa produziam espectros no ar e na terra.

Andou até ter a sensação de que seus sapatos se fundiam com o solo daquela terra batida e um pouco mais. Os descaminhos que percorria eram tortuosos: chão de terra, morros e descidas abismais, vegetação que crescia violentamente dos dois lados daquele pedaço de terra sem fim ou começo.

Caminhava na beira da rua, onde as pedras disputavam espaço com a relva e ele as vencia, com suas botinas encharcadas e lamacentas, deixando um rastro de destruição por onde passava sem que percebesse a luta que batalhava.

Caiu no vazio em que aparentava estar ao dar com o rosto nas pedras. Acordou depois de 20 minutos, levantou-se, trôpego, tocou seus lábios e sua testa e sentiu sua pele dilacerada, o líquido quente escorrendo pelo seu pescoço, criando uma figura rubra sobre sua pele pálida.

Ao olhar para trás, a meio passo de distância, se deparou com a visão de uma galocha. A galocha era amarela e se destacava na luz pobre daquela rua maldita. Como poderia não tê-la visto? Não seria possível… Estava certo de que, se estava estivesse ali quando ele passara, ele a teria visto.

Seu corpo caiu de joelhos frente àquela aparição, seus braços e pernas desarticulados, sua cabeça flutuando, seus pés em meios de calçar a bota e sair chutando pedras e relvas na beira de estradas e rachando a testa e a boca de miseráveis como ele.

Não seria possível dizer quanto tempo esteve ali. O tempo nem sempre é cronológico. Mas aquela visão lhe dava medo. A galocha amarela parecia não sucumbir ao tempo e ao espaço. Permanecia seca e ele tinha a impressão de que a água não entrava no vazio onde deveriam estar seus pés, ela parava no ar e escorria para os lados, encontrando-se com a valeta que exalava a podridão daquele lugar.

Diacho! Que essa galocha do inferno volte ao lugar ao qual pertence! Chutou a galocha com força para o fundo da valeta. Que ela apodrecesse com os restos de fezes e animais mortos.

Se recompôs, levantou e subiu a rua, olhando atentamente para a terra sob seus pés, com medo de que a galocha cruzasse novamente seu caminho assim como havia aparecido antes: sob a testemunha do luar. Tinha a impressão de que já tinha visto essa galocha antes… Sim! Tem vagas memórias de seu pai, mas lembra que ele tinha uma galocha como aquela e a usava regularmente para arar a terra, antes de abandonar ele e sua mãe.

Amava Helena. Como ela podia o abandonar assim? Ele nunca seria capaz de fazer isso… Não saberia como seria sua vida sem ela. Via Helena como parte de si e gostaria de que ela o visse como parte dela. Como um. E ela o chamou de zé ninguém. Zé. Ninguém. Ora, ele não era zé ninguém. Ele era alguém.

Ainda, a imagem daquela galocha não saía de sua cabeça. Como apareceu sem que ele a visse? Poderia ser um aviso? Uma promessa, uma profecia do retorno de seu pai? Seu pai, que abandonou ele e sua mãe, Lena, agora lhe coloca uma galocha amarela no meio do caminho. Aquela galocha que podia tê-lo matado, rachando-lhe o crânio, fazendo seu sangue escorrer e se misturar com as fezes e bichos mortos da valeta daquele maldito lugar. Podia sentir o cheiro do seu corpo se decompondo, seus membros duros, a mosca pousando na sua córnea pela manhã. Deus sabe que nenhum carro passaria por ali durante a noite toda.

Avistou sua casa a cerca de 600 metros. Sua mãe sempre dizia que ele devia trabalhar e comprar um carro. Talvez devesse mesmo, seus pés já estavam cansados e, com um carro, não tropeçaria em galochas amarelas na beira da estrada.

Abriu a porta de casa, despiu-se antes de pisar dentro da sala. Tirou a camiseta, a calça, a cueca, usou a camiseta para limpar o sangue que escorria por seu corpo molhado, entrou na sala e, sobre a televisão, avistou a galocha amarela.

Sentiu seu corpo nu se desfazendo. Antes que se liquefizesse e escorresse pelo chão, saiu correndo em direção a casa da sua mãe, que morava logo à frente. Agora tinha certeza de que a bota era do seu pai e que ele estava ali para destruir ele ou Lena. Ninguém poderia separar ele e Lena.

Ele era alguém… Helena.

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