Perfumes de infância

Daniela Zanutto
Ninho de Escritores
4 min readNov 12, 2020

Crescida, a menina carregava consigo a memória olfativa da avó. Conforme o carro do pai ia se afastando de São Paulo e se aproximando da cidadezinha interiorana, do velho portão de madeira cuja pintura branca já estava amarelada pelo tempo, o cheiro de terra úmida ia enchendo seus pulmões, refrescando o respirar e limpando as narinas para sentirem o doce perfume de café fresco e bolo assando que sempre havia na chegada à casinha.

Fubá? Chocolate? Laranja? Naquele dia não.

O abraço na avó impregnava a roupa da menina do perfume de leite de rosas ou lavanda e talco. Sabendo que o filho levaria a neta para passar as férias com ela, a avó sempre os aguardava de banho recém-tomado, vestido florido e seus tamancos anabela. A neta fugia dos banhos como se fosse uma gatinha arisca, então a avó sempre queria deixar o bom exemplo do asseio, estando limpinha e cheirosa para aguardar seus visitantes mais ansiados.

Nem talco, nem leite de rosas, nem lavanda. Naquele dia não.

Sempre comiam o bolo juntos e o pai tomava meio bule de café — sempre doce, mamãe! — antes de pegar a estrada de volta. O tempo urgia e ele precisava deixar a filha com a mãe no início de cada mês de julho desde que se tornara viúvo, para que pudesse trabalhar durante o mês de férias escolares. Havia muitos pacientes sempre esperando e ele não conseguia ficar longe do consultório muito tempo.

Pressa, pacientes esperando, trabalho a fazer. Naquele dia não.

Os dias julinos eram os mais felizes para a menina. Não fosse a insistência da avó para que ela sempre tomasse banho — por que todo dia? — não havia nada de ruim em estar ao seu lado. Todos os dias a avó inventava algo para fazerem juntas que acabava se tornando brincadeira: costurava bonequinhas de pano, jogavam 5 Marias, batiam massas de bolo, enrolavam nhoques como massinha de modelar e regavam as plantas no jardim. Essa era a única atividade sagrada, diariamente repetida. A neta queria andar descalça no canteiro, mas a avó insistia em calçar nela as galochas amarelas.

Sem pés descalços, nem galocha colorida. Naquele dia não.

Nas últimas férias de julho em que ainda serviam as galochas (mesmo apertando os dedões), propôs a avó que elas plantassem um pé de couve em homenagem ao canteiro fértil que a neta cultivava em suas orelhas. — Pára vó! A menina não gostou muito da crítica, mas riu com a avó e foram se aventurar no jardim com as sementes, terra e o grande regador de alumínio. Ao final da plantação, as galochas, roupas e unhas estavam marrons e até nas bochechas cujo sorriso aprofundava as covinhas da neta havia lama.

Sorriso, covinhas, risos. Naquele dia não.

Ao final das férias, o pai levou consigo para buscar a filha uma novidade com forte perfume de baunilha e aconchego, apesar da denominação assutadora das histórias de fadas: uma madrasta. Pouco tempo após as férias, eles se casaram e a menina passou a ter uma figura materna presente. Sempre presente. — Não precisa se preocupar com ela, mãe. Está bem cuidada aqui e assim a senhora não tem mais trabalho. A senhora precisa descansar, já não é mais nenhuma jovenzinha. Assim que possível vamos fazer uma visita.

Nada de aconchego, nem presença. Naquele dia não.

Conforme o carro ia se afastando de São Paulo e se aproximando da cidadezinha interiorana, o cheiro de terra úmida ia enchendo seus pulmões, refrescando o respirar e limpando as narinas que instintivamente procuravam inalar o doce perfume de café fresco e bolo assando que eram costumeiros na chegada à casinha.

Porém, naquele dia já não havia mais os perfumes de que tanto gostava na infância. Era uma mistura de crisântemos, café velho e velas acesas até que após um pai-nosso uníssono apenas a família seguisse para a cerimônia de cremação.

No dia seguinte, acompanhada de sua filha, a outrora menina que não gostava de banho voltou ao crematório para buscar a caixinha com as cinzas da avó. O pai não pode ficar, porque o hospital estava cheio e precisava dele, como sempre. A madrasta carinhosa que não compareceu ao velório para cuidar da pequena neta por adoação, ofereceu-se para ficar e acompanhá-las até a casa da avó aonde iriam espalhar as cinzas no canteiro, mas a neta a dispensou — esse momento deve ser nosso; minha filha e eu vamos até o jardim da bisa que ela não conheceu.

A neta descalçou os sapatos e pisou a terra como gostava de fazer na infância. Enquanto sua filha percorria o jardim encantada com tantas plantas e afundando e mexendo os dedinhos dos pés na terra, ela de olhos fechados buscava os perfumes de bolo, café fresco, leite de rosas e talco; entretanto, foi o odor de terra molhada que despertou o déjà-vu e provocou a lágrima salgada que tocou seus lábios, fazendo-na abrir os olhos para então voltar no tempo e se ver menina novamente na corrida de sua pequena filha atrás de uma borboleta, próxima ao pé de couve, calçando as gastas galochas amarelas.

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Daniela Zanutto
Ninho de Escritores

Meus textos falam sobre o feminino e as suas implicações de uma maneira muito pessoal.