Presente, ainda que distante

Vitor da Silva
Ninho de Escritores
4 min readApr 29, 2021

Essa história começou quando Júlia tinha apenas 5 anos de idade e seu pai, Genival, levou-a a um médico a fim de tratar um problema em seus pés. O médico, atencioso, disse que ela não precisaria fazer cirurgia, mas que teria que praticar balé. Genival, que era viúvo e muito pobre, logo se espantou com a ideia, pois balé é um esporte caro e sua profissão de jornaleiro mal lhe dava renda suficiente para se manterem, mas o médico insistiu e disse que caso ela não entrasse no balé, poderia ter que passar por processos cirúrgicos no futuro. Preocupado com sua filha, Genival usou de toda sua economia, além de racionar até mesmo os itens básicos da casa, para matricular sua filha no balé. Fez com muita satisfação e acompanhou a pequena Júlia à primeira aula, pois a menina, desde que sua mãe havia falecido, era muito apegada a ele.

Quando entraram na sala, alguns pais de alunas ainda estavam deixando suas filhas e estranharam a figura do jornaleiro. Comentários e cochichos transcorreram a sala e da sala para os corredores, dizendo que o jornaleiro estava colocando sua filha no balé. “De onde ele tirou dinheiro pra isso?”, alguns diziam. Outros, diziam “Vai fazer só um mês e parar”. Seu Genival, um homem simples, mas muito honrado, sentiu-se humilhado pelos comentários e um imenso desagrado em permanecer naquele ambiente, mas sua filha insistiu para que ele ficasse e assistisse a aula.

Júlia foi acompanhada pelo pai em todas suas primeiras aulas, aprendendo os primeiros passos e posições. Ela era uma menina dedicada e aprendia mais rápido do que as colegas, o que deixava muitas das suas amigas invejadas.

Aconteceu que, devido às dificuldades financeiras, seu Genival procurou mais um emprego, para o turno da noite. Ele então deixaria sua filha no balé e seguiria para o trabalho, mas se deparou com uma dificuldade. A menina não mais conseguia aprender e acompanhar as aulas. As colegas caçoavam dela e os pais comentavam sobre a filha do jornaleiro, que já estava prestes a largar o balé.

Preocupado com sua filha, seu Genival tentou conversar com ela e estimulá-la a melhorar o desempenho nas aulas. Pediu um dia de folga no trabalho para acompanhar mais uma vez a filha à aula e, para sua satisfação, a filha teve o mesmo excelente desempenho de antes. Caminharam os dois de volta para casa, pelas ruas escuras, iluminadas por uma lua minguante. Todos os três sorrindo pelo caminho.

Porém, na aula seguinte, seu Genival voltou do trabalho para buscar a filha e a encontrou chorando por não ter conseguido acompanhar a aula. Astuto, o pai percebeu que ela só conseguia ter um bom desempenho quando ele a acompanhava e decidiu fazer o sacrifício de largar o segundo emprego e racionar ainda mais para mantê-la no balé.

No fim do ano, Júlia correu sorridente até seu pai para contar sobre a apresentação que aconteceria e da linda roupa que usaria. Com uma lágrima escorrendo, o pai teve que desmanchar o sonho da garota, dizendo-lhe que não tinham condições financeiras para participar da apresentação e que ela faria apenas as aulas, sem participar dos ensaios. Foi uma notícia difícil para a garota que desabou e, chorando, saía todos os dias das aulas mais cedo, para não participar dos ensaios.

Com o passar do tempo, a menina cresceu e se desenvolveu cada vez mais no balé. Todas as colegas e professoras admiravam seu talento, esplendor e suave leveza de movimentos. Júlia já compreendia melhor a situação financeira do pai e não mais chorava por não participar das apresentações. Ainda assim, nutria o sonho de um dia se apresentar em um palco para um grande público. Fechava os olhos em casa e se imaginava num palco majestoso, com um tutu decorado e recebendo muitos aplausos.

Quando ela já estava para se formar no balé, surgiu a oportunidade de fazer uma prova para participar do corpo de baile de uma das maiores companhias de balé do mundo. Todas as meninas da turma estavam entusiasmadas, treinando dia e noite para obter o melhor desempenho, mas sabiam que quem tinha as maiores chances de ser aprovada, era a Júlia.

Poucos dias antes da prova, uma das colegas de Júlia relatou o roubo de um anel de ouro. O burburinho foi tão grande que até a polícia foi acionada para o caso e, nas buscas, encontraram o anel na bolsa do seu Genival, que foi levado para a delegacia aos gritos de “Eu sou inocente!”. Houve um julgamento rápido e seu Genival foi condenado a alguns meses de prisão.

O dia da prova havia chegado e Júlia, traumatizada por ter visto o pai ser preso dias antes, mal conseguia caminhar pelas ruas. Apenas foi ao teatro por insistência de algumas amigas, pois sabia que não conseguiria ser aprovada naquelas condições, ainda mais porque não conseguia dançar longe da presença do pai. Passou o tempo todo cabisbaixa, com lágrimas a escorrer, aguardando sua vez sem sequer vestir a roupa. Quando faltavam poucos minutos para ser chamada, seu celular vibrou em sua bolsa. Júlia não estava em estado de espírito para atender a ligação nenhuma, mas a insistência foi tanta que ela atendeu:

– Alô?

– Minha filha!

– Pai?

– Um cara aqui que tem um celular clandestino me emprestou pra poder te ligar.

– Pai!

Conversaram por algum tempo e o pai a encorajou a participar da prova e dar o melhor de si. Ela enxugou as lágrimas e se vestiu, sendo logo chamada para sua apresentação. Seu pai não estava no local, mas ela podia sentir sua presença e encantou a todos os jurados com seus movimentos, com a leveza dos seus braços, a firmeza das pernas, o esplendor do seu jeté, a agilidade de seus fouettés. Perfeição era a única palavra que poderia descrever sua apresentação

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:%D0%94%D1%8B%D1%85%D0%B0%D0%BD%D0%B8%D0%B5_%D0%B1%D0%B0%D0%BB%D0%B5%D1%82%D0%B0.jpg

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