Princípia

Laís Grilletti
Ninho de Escritores
6 min readAug 26, 2021

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Em Princípia, nenhum morador jamais nasceu. A população de imigrados daqui é um coletivo de todos os cantos do mundo, dos mais longínquos àqueles ainda mais distantes. Legiões de arrependidos, redimidos, enfadados. Multidões de desgastados, penitentes, famintos. Todos atraídos pela mesma promessa. A chance de encontrar o próprio começo.

Quando o mundo ainda era jovem, os começos estavam por toda parte. Abundantes, poderiam ser encontrados virando aquela esquina em um esbarrão.

Com o vento, as notícias se espalharam por outros vilarejos, atraindo curiosos, exploradores e aventureiros ao que ficou conhecido como a Corrida pelo Dia Um. Apreendidos, capturados e contrabandeados, os breves inícios eram exportados para outras cidades pelo preço de pequenas fortunas, pagas por bandos de almas esgarçadas, sedentas e viciadas que clamavam por renovação.

Pepitas, pedras e grãos eram moídos, filtrados e ensacados em pequenos pacotinhos de sais de banho que prometiam a transformação.

Hoje, o mundo já não tem a mesma idade. Os raros começos restantes só se encontram encrustados em rochas subterrâneas no coração da cidade. Lá pela chapada, depois de cavar por semanas até o mais profundo do mundo, os recém-chegados ainda carregam a esperança de encontrar um começo intocado.

Entre os mal-chegados, naquela tarde abafada e vagarosa, estava Miguel. Miguel era, como tantos outros, um ponto na história, arrastado em linha pela própria continuidade do tempo.

Sofria de despedaços. Entregara seu coração a uma jovem que, na distração dançante dos seus 20 e poucos, o derrubou no chão. A assistência técnica foi definitiva: não tinha conserto.

Diferente dos que buscavam se aposentar de quem foram por tanto tempo, Miguel não se importava com o corpo, a forma, o nome ou a cor.

Garimpava na esperança de restaurar seu coração.

No cardio-vazio, nasceu a gana por explorar os minérios mais perigosos de Princípia. Sem descanso, Miguel sobrevivia nas grutas inabitadas do outro lado da chapada garimpando suas paredes em busca das pedrinhas douradas que habitavam seus sonhos.

Dormia somente quando as forças se esvaiam em pequenos cochilos atormentados com a bateia sob o próprio corpo. Levantava no susto, lavava o rosto com a água do rio e se punha novamente a garimpar.

O fervor com que cortava as paredes das cavernas alargava também o espaço vazio no peito. O brilho de seus olhos mudara. Sintoma imperceptível em uma cidade acometida pela loucura. Era escuro, profundo e provocava arrepios em qualquer um que o encarasse depois do sol partir.

A Grande Febre tomava seu corpo.

Começava com um impulso de desespero de quem quer habitar outras vidas, mas com o tempo, virava desejo inflamado de encurtar o próprio meio e buscar o fim. Muitos foram aqueles, antes de Miguel, a se atirarem do alto da chapada diretamente na dureza do rio logo abaixo, fazendo valer seu direito de se encerrar.

Os dias passavam e a febre elevava mais e mais a temperatura de seu corpo.

Já não dormia nem os breves cochilos, já não ouvia a própria fome.

Certa manhã, após lavar o rosto para espantar a vontade de morte, Miguel se assustou ao ver uma sombra saindo de dentro da sua caverna. Era Matteo, uma lenda antiga na região.

— É raro encontrar alguém por essas paragens — anunciou Miguel na porta da gruta.

— Ô compadre, não te preocupes com concorrência. Venho apenas matar a saudade. Hoje faz 30 anos desde que encontrei aqui minha primeira pepita de começo. Prazer, Matteo.

— Opa, sou Miguel — falou estendendo sua mão. Preciso aprender um pouco dos seus segredos, Seu Matteo. Há meses sem-fim busco meu começo, e tudo que encontro são pedras comuns.

Matteo analisou o jovem e reconheceu em seus olhos os sintomas da grande febre. Naquele ritmo, Miguel não teria mais do que uma semana de sobrevida.

— O que te fez entrar nessa busca com tanto fervor?

— Falta-me um coração, senhor. Preciso, com urgência, de um começo que me ocupe o centro do peito.

Matteo olhou com piedade para o jovem garimpeiro. Respirou alto e se aproximou dele colocando a mão em seu ombro.

— Sinto te dizer, Miguel, mas os começos não curam o coração.

Miguel jurou ter sido aquela uma alucinação. Esfregou as mãos nos olhos na tentativa de ouvir melhor.

— O que o senhor tá dizendo?

— Já vivi dezenas de começos em vidas das mais diversas, amigo. Já fui velho, jovem, garoto, mas em todas elas, levei as mesmas batidas comigo.

— Você tem certeza disso? — falou de voz alterada um Miguel desenganado.

— Ah Miguel, a certeza de quem já perdeu as contas de seus começos.

— Mas e esse buraco no meu peito? — perguntava andando de um lado para o outro na frente da caverna, de olhos vermelhos marejados encarando o chão.

Matteo se via diante de um espelho, de quem fora há 20 começos atrás. Saindo da caverna, onde o sol o alcançava, tirou do bolso uma pequena semente cor de bronze.

— Sabe Miguel, nessa mesma chapada, há muitas vidas atrás, eu descobri que os começos não se encontram só nas paredes da caverna.

Miguel olhou para a semente nas mãos do velho garimpeiro.

— Começos também nascem da terra.

— O quê? — Miguel parou o caminhar inútil. E como ninguém está gritando sobre isso na feira de Princípia?

— Ah amigo, não era do interesse dos barões trocar o comércio controlado pela liberdade das plantações. A abundância nunca foi lucrativa.

— Então, como você conseguiu essa semente?

— Carrego comigo há décadas no bolso pra que nunca me falte um começo. Se plantar, um recomeço irá nascer.

Matteo entregou a semente a Miguel, atônito com a notícia.

— Ele é diferente das pepitas que buscas nas paredes dessa gruta. Leva tempo, cuidado, cultivo. Mas pé de começo, começo dá!

Seus olhos, de imediato, abrandaram. Miguel afundou a semente na terra ao lado da caverna, agradecendo ao velho pela generosidade.

Dormiu naquela noite sono merecido, comeu como quem descobre o sabor pela primeira vez. Dali em diante, Miguel voltou a passear pela cidade. Abandonou a caverna.

Nas visitas à muda de começo, colhia algumas pedras que logo transformava em pingentes, anéis e joias. Passou a vendê-las na feira da cidade. Não levou muito até que se afeiçoasse a um jovem padeiro que passava por sua porta todo dia ao mesmo horário. Antes da árvore crescer na altura da cintura, os dois já moravam juntos.

Com o tempo, seu começo floresceu. Dormiu embaixo das estrelas, guardou as memórias no sótão, deixou o amor entrar pela porta. Bebeu da vida, tomou banho de rio, abriu alas no Carnaval. Guardava o segredo da árvore num espacinho sobrante do coração.

Até que um dia, avistou Matteo do outro lado da praça em meio ao alvoroço da feira de domingo.

— Seu Matteo, aqui, Miguel! Como é bom te ver por aqui! — acenava com a voz alta para chamar atenção.

Ao avistá-lo, Matteo sorriu e foi em sua direção.

— Miguel, que surpresa te ver na cidade!

Miguel abriu o sorriso abraçando o velho amigo. Em sussurros, virou para longe da rua, garantindo que ninguém os ouvisse.

— Seu Matteo, a semente que me deu é mesmo poderosa. Não habito outra pele, mas já me sinto numa vida completamente nova, nem lembro mais dos meus dias de garimpo.

Matteo olhou para o jovem e gargalhou.

— Ah Miguel, pois tenho um segredo a te contar. Aquela semente é de Catingueira. Eu carregava no bolso naquele dia da caverna. É tão comum como aquelas da barraca da Dona Marta.

Miguel olhou sem entender.

— O quê, você tá me dizendo que é uma árvore comum?

— Comum não é, ela foi um novo começo pra você, não foi?

Matteo seguiu pela feira, deixando Miguel com muito a pensar. Olhou de volta para sua mesa encarando os passarinhos de rubi que esculpia. Riu sozinho em voz alta, sabendo que ninguém jamais entenderia.

Hoje, quem chega ao ponto mais alto de Princípia, consegue ver um pontinho amarelo em meio à chapada. É a árvore de Miguel, resistente a ponto de assustar qualquer barão. Ela nos lembra que começos não são raros achados da sorte; são sementes que brotam, mesmo quando parecer faltar o coração.

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Laís Grilletti
Ninho de Escritores

Escritora e contadora de histórias, autora do livro Minu e a cidade sem tempo. Escreve histórias infantis que, vez ou outra, caem nas mãos dos adultos.