Quando sua primeira obra é um lixo

Escrevi meu primeiro livro aos 15 anos e ele é bem ruim, mas também é muito bom. Vem comigo que eu explico.

Tales Gubes
Ninho de Escritores
3 min readSep 20, 2017

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O livro chama A teoria dos anjos e conta a história de um adolescente que, após sofrer um trauma em sua vida, desenvolve uma teoria de que todas as pessoas têm alguém que as ajuda em situações de tristeza. Essas pessoas agem como anjos. Ele decide “ser anjo” e ajudar um outro rapaz apaixonado a se aproximar da garota dos sonhos.

Quando terminei de escrever, mostrei-o para uma professora de língua portuguesa. Ela devolveu meu material inteiramente revisado e com um comentário sobre meu “estilo machadiano”. Na época, eu tive a certeza de que havia nascido para ser escritor. Aquele era um indicativo de que eu estava no caminho certo.

(Na verdade, relendo agora, percebo que ela nunca disse que meu estilo era machadiano e sim que eu poderia aproximá-lo disso. Ai, essa memória!)

Levei meu material para uma editora e, algumas semanas depois, recebi o parecer de um escritor publicado. Quando a gente tem 15 anos e não entende do mercado editorial, podem acontecer duas coisas muito curiosas:

  • ser autor publicado parece algo de outro mundo e que instantaneamente coloca a pessoa em outro patamar de autoridade;
  • ser uma editora parece algo de outro mundo e que instantaneamente coloca as pessoas dentro dela em outro patamar de autoridade.

Ocorre que era uma editora comercial, me cobraram 5 mil pra imprimir o livro e eu não aceitei. Meu livro ficou na gaveta.

Avança o tempo, eu estava concluindo o mestrado aos 25 anos. Um dia, olhando meus materiais antigos, cruzei com o original dA teoria dos anjos revisado pela minha professora. Reli e percebi muitos defeitos — os de linguagem estavam marcados à caneta, mas os narrativos até então eram invisíveis pra mim. Aquele livro era um lixo.

Bom, pelo menos foi o que eu pensei na época. Porque hoje eu sei que nada é por si só, as coisas estão sempre em relação e as posições que ocupam são as posições que a gente está habilitado a entendê-las. Eu tinha muita coisa pra resolver na cabeça e ainda posicionava as coisas e pessoas entre “coisas boas” e “coisas lixo”.

Ocorre que agora, com 31 anos, há três dos quais eu cuido do Ninho de Escritores, eu reli mais uma vez A teoria dos anjos. Ainda é um livro cheio de erros gramaticais e com uma narrativa furada. Mas já não é mais um lixo, e sabe por quê?

Porque um guri de 15 anos conseguiu o tempo e a disposição para fazer um material tão bom quanto possível com a formação que ele tinha naquela época. Porque o Tales com o dobro da idade ainda tem dificuldade para fazer o que sua versão adolescente conseguiu.

A primeira obra, não importa o quão ruim ela seja, é o marco de uma vitória.

E que bom se for ruim porque isso só indica que há espaço para aprimorar. Muito espaço. Se eu continuar aprendendo e escrevendo, a tendência é que meus próximos livros sejam melhores. E são!

Hoje olho para A teoria dos anjos e vejo que o livro é um anjo pra mim, um lembrete de que já fui capaz de fazer meus sonhos acontecerem. Do jeito que dava, sem esperar o momento certo, sem deixar pra depois ou fugir do desafio. E se eu fui capaz, em qualquer momento da vida, de ser ousado o suficiente para concluir um livro, eu ainda sou e sempre serei.

Minha primeira obra não foi um lixo, no final das contas. Lixo é aquilo que a gente descarta e não mantém na vida. Eu não quero descartar A teoria dos anjos assim como porque este livro revela um caminho que percorri. Eu escrevia com menos qualidade do que escrevo hoje e está tudo bem.

Não preciso usar uma máscara de perfeição.

Escrevi um livro fraco. Já achei que era um lixo. Já fui o tipo de pessoa que achava que outras pessoas podiam ser lixos. Tudo isso já mudou em mim.

Um brinde a continuar aprimorando as obras que legamos ao mundo!

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Tales Gubes
Ninho de Escritores

Um olhar não-violento para uma vida mais livre, honesta e conectada. Criador do Ninho de Escritores, da Oficina de Carinho e do Jogo pra Vida.