Segredo engarrafado
Tinha os olhos voltados para os olhos de quem tinha jurado amor eterno. Ainda vivia a infância do desentendimento de que as juras se escondiam dos passos mais verdadeiros. Quem tem a coragem no coração de lançar a sinceridade dos dias e das horas? Tinha dado palavras como se nunca fosse ser cobrado, não por um anjo ou um Deus punitivo, mas pela própria Vida em sua jornada de desmascarar o que parece real. Era isso. Estavam acabando com tudo, e as juras, embora desmentidas, não foram sequer lembradas. Na hora do desfecho até a falsidade é perdoada. Quantas horas trocaram suas almas como se fossem um mundo alternativo, quase fantástico, e não tinham lançado as frases que por fim lançaram… Finalmente não estavam enganados ou queriam enganar, mas surgiu também um grande ácido, e expressaram todos os pequenos ressentimentos, toda aquela ninharia amarga e de amargura que tinha corroído até os olhares, que agora não escondiam a febril vontade de falar e de falar como se o fim nem sequer fosse a solução. Mas era… Era a única solução depois dos anos vacilantes de tropeços que eram guardados como mágoa ao invés de resolverem as emoções perturbadoras por meio do carinho e do entendimento. Tinham desperdiçado a alegria de se acolherem, por anos tiveram a chance… Mas não adianta falar de chance com os olhos vidrados nos olhos dela. Por fim, encerrou ele com uma frase de tanto impacto que os olhos dela lacrimejaram um pouco, ela se virou e foi tomar o caminho que agora se abria, embora um pouco contrariada. Ele olhou a partida dela sem esboçar nenhum gesto que pudesse reverter, porque tinha selado com sua frase dois destinos, e ninguém mais reverteria o drama inútil. Sim, porque ele percebeu que no fundo era um drama inútil, e tendo dito a última frase, que até se espantou com certa altivez com que a lançou, achou que nunca diria algo parecido, tinha lá seus escrúpulos. Ela tinha partido, ele olhou em redor, ninguém prestava atenção nele, parecia alguém esquecido por todos, que importava terminar um relacionamento? Ninguém estava preocupado, as horas ainda batiam sem erro, os passos sobre o viaduto não mudaram um mílimetro sequer. Esse desinteresse tocou levemente a alma dele. Quem está aqui por nós? Ela que agora não irá o ver nunca mais? São tolices de alguém mimado? Ou aquilo fazia algum sentido? Tentou ficar quieto, mas estava levemente perturbado, ou seja perturbado o suficiente para ruminar alguns pensamentos irritantes, mas não tanto para transparecer ou dar escândalo. Os dias deram seu curso… Quando lançou a frase derradeira, imaginara estar sendo corajoso e destemido, mas os dias deram a amplitude do que ocorrera. Suas mãos pareciam tremer um pouco, e perguntou se era assim ou passou a reparar depois de tudo? Não conseguia vencer a companhia dela que mesmo nas angústias parecia diminuir o pedaço maior da sua solidão. Sentia falta até de coisas que julgava irritantes. O fim tinha transformado a visão dele, e agora parece que tudo era maravilhoso, de um modo bem esquisito, afinal quando juntos só via dor e destroços… Os dias seguiam. O calendário não respeitava essa inversão de sentido produzida em sua alma, e começou a ser penoso e um fardo carregar o peso da última frase. Começou a pensar meios de expiar essa culpa rançosa que estava degradando sua alma. Mas como? Estava em casa quando o pensamento rasgou sua mente, e nesse momento viu uma garrafa antiga de vinho já vazia. Conectou os pontos numa ideia estranha. E se escrevesse a última frase, fechasse na garrafa de vinho e lançasse ao mar como os antigos, quase uma oferenda ao desfecho de algo que agora estava consumindo suas entranhas. E se a garrafa se espatifasse no meio do mar com alguma batida imprevista? Se nunca chegasse a ninguém? Talvez não fosse essa a ideia, só queria se despojar da frase que selara o fim, queria extirpar da alma a culpa e dor por essa derradeira frase, de fato estava o consumindo. Só de lançar a garrafa à beira-mar e ver ela seguir mar adentro, talvez tivesse a boa vontade dos deuses todos que sequer acreditava. Pegou com certa velocidade um papel em branco, empunhou da caneta como se fosse a última arma contra um ataque sem razão mas que precisava ser defendido, e as letras começaram a correr com uma caligrafia modesta, mas legível, e o papel foi preenchido com sua última frase para a antiga namorada. Nesse momento até surgiram algumas gotas em seus olhos, quase como se um contra-ataque da ex-namorada que havia também quase chorado, e olhou admirado para a frase escrita, como se fosse um segredo de um rei para seu conselheiro, tinha feito uma carta sem destino, e engarrafá-la para atravessar sabe-se lá que ondas e marés… Talvez invejasse as marés, também queria ir e vir, queria esconder no balanço os pedaços desfeitos da sua alma. Sentiu que entregaria ao mar, como se fosse o carteiro de um infinito, no dia seguinte. Preparou a viagem para a praia com mais cuidado que uma mãe ao primeiro filho. Diante do mar sentia que a solidão tinha sido engolida pela imensidão, e ele participava dessa vastidão, era da mesma substância que o silêncio genuíno do mar. Olhou ao redor, e cada qual parecia entretido nos próprios afazeres, ele pegou a garrafa com seu segredo e despachou sem volta à onda que agora voltava com a garrafa. Estava alegre, realmente era alentador ver sua frase escondida partir. Novamente olhou ao redor, só os pássaros de uma forma estranha pareciam se importar. Era hora de retornar. O que ele não viu, é que um mês depois a garrafa voltou à mesma praia que ele tinha deixado…