Soluço

Daniela Zanutto
Ninho de Escritores
4 min readMay 24, 2021

Desde bebê, Mariana soluçava muito. As crises eram frequentes, mas passavam após algumas horas. Era apenas questão de paciência e reza, como a benzedeira havia ensinado. Porém, dessa vez era diferente: Mariana soluçava há três dias ininterruptamente. A mãe não sabia mais o que fazer: além do terço e do credo orados, já havia feito a menina beber água gelada, segurado o nariz tapado para prender o fôlego; surpreendido-a com susto e até colado uma linha vermelha no meio de sua testa, como fazia quando ainda era um bebê. Nada parecia funcionar. E a pequena angustiava cada dia mais.

Se pelo menos essa menina falasse! Mas se nunca havia emitido uma sílaba sequer em seus cinco anos de vida, não seria para expressar desconforto com o soluço que o faria. Aquela emoção esperada ao ouvir as primeiras sílabas do bebê, nunca foi sentida por seus pais. Aliás, seu pai nunca se conformou de ter uma filha soluçantemente muda e duvidava dos diagnósticos, fossem os místicos da benzedeira, ou os clínicos do médico da cidade. Era descrente. Entendia ser impossível que a criança ainda fosse capaz de aprender a língua letrada, de comunicar-se por outra forma que não fossem gestos.

Não valia a pena levar Mariana para mais uma consulta. Dr. Augusto cuidava de crianças, adultos e idosos sem distinção, mas estava cansado, como já havia confessado a alguns pacientes. Às vésperas de completar 70 anos, faltavam-lhe conhecimentos mais modernos de medicina, o que os pais somente perceberam após diversas consultas em vão, sem que o médico pudesse dar uma resposta para justificar a mudez da filha. Além do mais, o pai julgava que soluço nem era doença.

Desesperada, no quarto dia do soluço sem fim, mesmo contrariando o marido, a mãe levou Mariana ao Dr. Augusto. Para sua surpresa, foi recebida por uma jovem de jaleco branco com um estetoscópio em forma de borboleta em volta do pescoço — Dra. Vivian, prazer! Filha de Augusto, a novata estava assumindo a clínica e os cuidados dos pacientes da cidade, após ter estudado fora do país. Pendurados nas paredes do consultório, havia os diplomas da nova médica: especialização em relações emotivas, medicina antroposófica, psicologia encantada e ciências inexatas. Tais qualificações fizeram a mãe confiar que a doutora possuía mais conhecimento acumulado que o total de anos vividos pelo pai dela. Os olhos da mãe e filha brilharam para aquela consulta.

Levaram-na para uma sala onde realizou-se um ultrassom. A médica desconfiava que o soluço fosse sufocamento por ranaetismo. Vivian olhava admirada para a tela do aparelho enquanto deslizava o transdutor desde o pescoço até o pé do abdome de Mariana. Seu palpite estava certo! Raríssimos casos haviam sido relatados na literatura médica!

De volta ao consultório, ela explicou para a mãe o que se passava com sua filha. Era a manifestação raríssima de uma doença presente apenas em meninas e que em muitas vezes nem se diagnosticava, devido a regressão dos sintomas ao logo da vida. Em seus estudos, Dra. Vivian soube apenas de um caso em que a paciente desenvolvera o ranaetismo em seu ciclo completo.

A explicação foi dada de forma muito clara sobre a evolução da doença: a menina nascera com ovos fecundados no estômago, que ao não serem naturalmente expelidos pelo organismo, desenvolveram para o estágio de girino até que um se metamorfoseou num sapo. Apesar do soluço crônico, ela não conseguiu expelir o animal ao longo dos anos. Agora, ele tentava desesperadamente sair pela boca da menina, subindo por sua traqueia, sufocando-a com aqueles soluços intermináveis.

O diagnóstico explicava não apenas o soluço, mas a mudez da filha.

O caso era raro, mas não irresolúvel. Uma simples cirurgia desentalaria aquele sapo da garganta de Mariana e a livraria dos soluços.

Dr. Augusto foi chamado para ajudar e instrumentar a cirurgia. O pai de Mariana, que já não confiava no velho médico, não podia acreditar que o diagnóstico apontado por sua filha fosse real. Um sapo? Na garganta da menina? Só vendo para crer.

Exigiu que trouxessem o bicho para ele logo após o final do procedimento. Vivo, de preferência.

Na enfermaria a menina e o sapo ainda dormiam, resultado da anestesia. Dra. Vivian retirou o anfíbio de dentro da paciente com máximo cuidado para poupar-lhe a vida e poder provar ao pai de Mariana que o ranaetismo não era uma ficção. Agora, além de ter o soluço interrompido, existia uma chance que sua filha desenvolvesse a fala, já que não teria mais nenhum empecilho entre sua traqueia e cordas vocais, dizia animada a médica.

Não. Vendo o animal dormindo naquele aquário, só podia pensar que tudo não passava de uma encenação; uma fábula para resolver um simples soluço, que nem doença era, e arrancar-lhe dinheiro para uma cirurgia. Estava irritado com a credulidade da esposa e com a forma como ela facilmente fora enganada.

Foi então que Mariana abriu os olhos. Sentou-se na cama e olhou ao redor. Viu a mãe, o pai e os médicos em seu quarto. Inspirou profundamente segurando o curativo na altura da garganta e desatou:

- Cadê o sapo? Cadê meu sapo?

Os adultos no quarto entreolharam-se embasbacados. Dra. Vivian, seu pai e a mãe da menina começaram a tagarelar efusivamente, comemorando o sucesso da cirurgia. Em choque, o pai permaneceu mudo. Incrédulo.

Articuladíssima para alguém de cinco anos, a menina parecia ter despertado com uma vitrola no lugar da garganta.

- Papai, eu sei falar. Sempre soube. O sapo me atrapalhava. Ele era meu problema. Mas você não acreditava em mim. Eu falo tudo, posso falar muito. Sei muitas coisas. Você que não queria acreditar em nada e…

Ela já não sufocava mais.

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Daniela Zanutto
Ninho de Escritores

Meus textos falam sobre o feminino e as suas implicações de uma maneira muito pessoal.