Triste fim do déspota negacionista

Daniela Zanutto
Ninho de Escritores
4 min readMay 5, 2021
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O clima de pesar hipócrito era nítido entre elas. Aline ligava todos os dias para a mãe e forçava uma voz preocupada ao perguntar sobre o estado de saúde dele. Torcia intimamente para que a resposta não fosse “ele melhorou”. Difícil, mãe… temos que ser fortes — ela repetia todos os dias, mecanicamente, imaginando o quanto para sua mãe também era um alívio ter o marido internado, sem perspectivas de voltar para casa.

A covid-19 conseguiu trazer paz àquela casa, por mais insólito que isso pudesse parecer. Enquanto tantas famílias sofriam por seus parentes hospitalizados e muitas vezes sem esperanças de sobreviver, mãe e filhas silenciosamente agradeciam ao vírus e ao negacionismo de Heitor e conspiravam com a possibilidade de não o ter mais de volta à casa.

Angélica e a mãe se revezavam nas ligações para o hospital desde o dia em que o pai fora intubado, revezando a responsabilidade em saber notícias que pudessem manter o estado de paz em casa. Viviam há 2 semanas de uma forma mais leve, sem os gritos, sem medo e sem a rigidez dos horários e regras do ex-capitão do exército que fazia do lar dessa família, majoritariamente feminina, um quartel.

Aline, a filha mais velha, não suportou por muitos anos viver sob tanta opressão. Após ter levado surras e castigos diferentes durante a infância por sempre ter sido uma criança petulante e respondona, viu na gravidez aos 16 anos a chance de ser expulsa de casa e dar adeus àquela vida insuportável. A família de seu namorado a acolheu e já havia 4 anos que morava com o então marido e seu filho na edícula da casa de seus sogros.

Ana Lúcia sofreu muito com a partida de Aline. Não porque fosse sua filha preferida, mas porque a sua presença insolente a protegia do marido nos momentos quando voltava alcoolizado dos bares e com o estômago roncando de fome. Quando ela ouvia o portão se abrir, já corria para a sala e se interpunha no caminho entre o pai e a mãe, evitando assim que Ana Lúcia fosse atingida por algum tapa antes que fosse capaz de esquentar o jantar e levar o prato feito para o pai. Após a partida de Aline, a mãe não pode mais contar com essa ajuda e a violência de Heitor aumentou.

Angélica aprendeu a temer o pai logo cedo. Por ser mais nova, tinha o instinto de imitar Aline, a quem admirava. Entretanto, ao copiar uma das brincadeiras ousadas da irmã mais velha, a caçula caiu ao tentar escalar a estante da sala, derrubando o móvel sobre si e a irmã, causando um braço quebrado em Aline, alguns arranhões em si mesma e a fúria do pai. Ao identificá-la como culpada por ter quebrado seu aparelho de som 3X1, arrancou-lhe as fraldas e deixou a marca de sua mão enorme em suas pequenas nádegas, que doeram por dias. Desde então, nunca mais imitou Aline e passou apenas a brincar em seu quarto, quieta, criando um mundo próprio e seguro para suas bonecas e ela.

Apesar do clima de paz instaurado após a internação de Heitor, nenhuma das 3 mulheres teve coragem de dialogar sobre a sensação de alívio que nutriam em relação a uma iminente perda dele. Como Ana Lúcia admitiria que ansiava pela viuvez e as filhas por se tornarem órfãs? Em meio a tantas famílias chorando seus mortos, parecia-lhes um pecado enorme assumir que invejavam o desfecho que a doença trouxera àquelas pessoas. Permaneceram assim, em silêncio sobre este sentimento comum. Fingiam a dor inexistente, consolavam-se umas às outras e aos poucos deixaram de diariamente ligar para o hospital, intercalando os dias, até quase se esquecerem de querer notícias.

Foi num domingo. Aline estava com o marido e o filho na casa da mãe para almoçarem juntos, algo que nunca tinham feito desde que havia sido expulsa de casa na época da gravidez. A mesa estava posta com capricho e sorrisos, os copos e pratos cheios, a cozinha cheirando a macarronada e alegria, quando o telefone da sala tocou. Trocaram um olhar rápido e Angélica correu para atender a ligação.

Rei morto, rainha posta! — às lágrimas, a jovem desligou o telefone e correu para os braços da mãe e da irmã mais velha. Fim do Absolutismo! Fim da era do terror! Agora somos nós, minha mãe, minha rainha! Abraçadas, Ana Lúcia não entendia bem as referências da filha enquanto Aline tentava rememorar de onde conhecia aquelas expressões usadas pela irmã. Em comum, além do estranhamento das palavras ditas por Angélica, estava claro o acontecido. Choraram juntas, sabendo umas das outras que não eram lágrimas de tristeza, mas o signo da libertação desejada.

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Daniela Zanutto
Ninho de Escritores

Meus textos falam sobre o feminino e as suas implicações de uma maneira muito pessoal.