Vênus em libra

Julia B
Ninho de Escritores
2 min readApr 13, 2021
Fotografia por Leo Berne

A. ri bonito e diz que a vida é mais leve com música. Boa. Tem um disco de Portugal the Man que conversa comigo do início ao fim, ela me diz enquanto me prepara os ovos pro café da manhã. Mas só esse, o resto não presta. Escuta só: e entoa os versos de olhos fechados como se sentisse o gosto do som, se deliciando com cada nota.

Mordo o pão amanhecido e torço pro resto da semana desistir de chegar. Ela flutua pela cozinha à procura da espátula, rodopia de volta pro fogão e me conta do novo longa do Fincher, em preto em branco.

A. acha graça quando não percebo a harmonia das cores que tal diretor escolheu pro filme, nem da plumagem dos passarinhos que nos visitam na janela. A luz, pra ela, emoldura o mundo. Tudo é uma fotografia esperando ser clicada, no momento preciso, com a angulação correta.

“Falta sal”, chupa o resto de tempero dos dedos e vira a panela com uma precisão cirúrgica, que é pra gema não abrir, ela me explica. Admito em voz alta que tudo em que ela toca fica impecável. Ela me fita de canto, “ tipo o rei Midas, que transformou com as próprias mãos o castelo todo em ouro?”, “Não, mais pra uma Medusa só que ao contrário. Onde cê põe os olhos as coisas se enchem de vida”.

Nesses três anos morando juntas, entra dia sai dia, entra homem sai homem, no fim das contas somos nós; uma xícara de café e um domingo de preguiça. Quando a vi pela primeira vez a admiração foi imediata. O sentimento, não. Ele foi se encorpando com o tempo, quanto mais açúcar, mais azedava, até virar esse agridoce que nem sei direito qual sabor tem.

Ela mal desligara o fogo, quatro patinhas deslizaram cozinha adentro e tropeçaram nos seus pés. A cadela do vizinho tinha acabado de ter filhotes, e vez em quando um escapulia por baixo da cerca. A. num relance voa ao chão e, amassando o focinho gelado, me solta que o amor é mesmo uma coisinha felpuda. “E ligeira”. Do mesmo jeito que veio voltou correndo jardim afora, latindo pros irmãos.

Me ajeito na cadeira. Ela continua no chão, aquietando o riso, capturando o momento. É como se pra ela a beleza estivesse sempre à espreita, implorando ser pega por algum desavisado. Vejo a fresta de sol lambendo seu rosto, e entendo. A vida é mais leve pra quem repara.

tema-desafio: astrologia

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