Vid(r)a(ça)s
No início, era potência. Reflexo de si mesma, espelho de mais ninguém. Forjada pelo fogo, porém, caiu em moldes alheios. Ganhou forma, fundo, gargalo. Caminhou pelo mundo sob esteiras e caminhões.
Quando tudo poderia, ela foi uma garrafa.
Ao fundo de si nada restava. Esvaziada, seria descartada. Consumida até a última gota, não sobrevivia a nenhuma utilidade. No caminho da reciclagem, atirou-se no chão. Escolheu os estilhaços a uma vida de garrafa.
Quebrou.
Quando os olhos se abriram, tudo era vidraça. A paisagem à sua frente, majestosa. Sentia o sol lhe atravessar formando arco-íris no chão. Se embebia da chuva, balançava com o vento. A protetora invisível do lado de dentro.
Até que a bola do vizinho perfurou seu coração.
A ameaça dos cacos escondia seus estilhaços. Plantada no cimento de um muro sem dono. Tornou-se arisca. Fingia proteger, mas torcia pela invasão. Nem o fogo lhe dava esperanças de recolagem. Quase acreditou numa vida para sempre lancinante.
Antes disso, a reciclagem a salvou.
Enfim, realizada. Refletia o mundo sem ser espelhada. Tantas vidas só caberiam se ela fosse duas. Lia palavras de colar cacos e corações. Alargava horizontes de palavras, películas e paisagens. Achou seu lugar nas lentes de um poeta.
Encontrou-se em seu próprio reflexo.